quinta-feira

ALFIE, O SEDUTOR

ALFIE, O SEDUTOR (Alfie, 2004, Paramount Pictures, 103min) Direção: Charles Shyer. Roteiro: Charles Shyer, Elaine Pope, peça teatral de Bill Naughton, roteiro de Bill Naughton. Fotografia: Ashley Rowe. Montagem: Padraic McKinley. Música: Mick Jagger, David A. Stewart, John Powell. Figurino: Beatrizx Aruna Pasztor. Direção de arte/cenários: Sophie Becher/Penny Crawford. Produção executiva: Sean Daniel, Diana Phillips. Produção: Elaine Pope, Charles Shyer. Elenco: Jude Law, Susan Sarandon, Marisa Tomei, Omar Epps, Nia Long, Sienna Miller, Jane Krakowski. Estreia: 05/11/04

Só mesmo alguém com o talento, o carisma e a beleza de Jude Law conseguiria fazer com que Alfie, protagonista dessa refilmagem do clássico inglês “Como conquistar as mulheres”, de 1966, um niilista quase chegando ao machismo pudesse ser ao mesmo tempo tão simpático. Com sua atuação nunca aquém de excelente, o jovem Law (que está presente em absolutamente TODAS as cenas do filme) faz com que as atitudes egoístas de seu personagem sejam absolutamente aceitas pelo público. Ele é o homem que todos os homens gostariam de ser e todas as mulheres gostariam de ter.
       
O jovem inglês Alfie Elkins (Jude Law) mora em Manhattan, onde, segundo suas palavras, “vivem as mulheres mais bonitas do planeta”. Trabalhando como chofer em uma empresa de aluguel de limousines, ele encontra tempo e dinheiro para suas maiores diversões: vinho e mulheres. Entre elas, a jovem mãe solteira Julie (Marisa Tomei), com quem tem um relacionamento quase sério e a cliente freqüente Dorie (Jane Krakowski), negligenciada pelo marido. Nem mesmo Lonette (Nia Long), a namorada de seu melhor amigo, Marlon (Omar Epps) o sedutor Alfie deixa escapar.
       
Duas mulheres, no entanto, vão mudar sua maneira de pensar: a bipolar Nikki (Sienna Miller), em quem ele quase vislumbra a chance de um namoro e a milionária Liz (Susan Sarandon), quase um espelho seu em forma feminina. Depois de uma crise de saúde e de um grave acontecimento Marlon e Lonette, Alfie finalmente chega à conclusão que deve dar um jeito em sua vida volúvel. No entanto, como ele mesmo percebe, às vezes isso pode ser muito difícil.

        

É fácil gostar de “Alfie”, o filme. Moderno, estiloso, elegante e chique, a obra de Charles Shyer (substancialmente diferente de seu original, estrelado por Michael Caine) começa como uma inofensiva comédia romântica, ameaça um dramalhão à antiga e termina com um sabor agridoce de realismo. Nunca, no entanto, o roteiro escorrega em situações forçadas e/ou exageradas. O diretor lança um olhar carinhoso aos anos 60, em um visual exuberante e inteligente. A fotografia de Ashley Rowe acompanha o estado de espírito do protagonista, e o público, que vê tudo através de seus olhos, deixa-se levar tranqüilamente, rindo às vezes e se emocionando em outros momentos. Para isso, a trilha sonora, com canções inéditas de Mick Jagger e David A. Stewart (ex-Eurythmics) surge magnífica. A ritmada “Old habits die hard” levou um Globo de Ouro pra casa, mas são as mais delicadas, “Let’s make it up” e “Blind leading the blind” que comove, em momentos chaves.
       
O elenco feminino não fica atrás de Law, diga-se de passagem. Marisa Tomei constrói uma Julie apaixonada, mas nunca disponível ao sofrimento; Sienna Miller (que namorou o ator depois das filmagens) faz uma estréia promissora e Susan Sarandon dispensa comentários. Com mais de 50 anos de idade, a veterana atriz dá de zero em todas as colegas de cena, em termos de sensualidade e talento. Não é à toa que são em cenas com ela que Jude mostra mais a que veio.
      
“Alfie” não foi um sucesso de bilheteria. No entanto, tem qualidades de sobra pra seduzir espectadores que procuram algo de substância entre as dezenas de comédias românticas que chegam de Hollywood semanalmente

quarta-feira

RAY


RAY (Ray, 2004, Universal Pictures, 152min) Direção: Taylor Hackford. Roteiro: James L. White, estória de Taylor Hackford e James L. White. Fotografia: Pawel Edelman. Montagem: Paul Hirsch. Música: Craig Armstrong. Figurino: Sharen Davis. Direção de arte/cenários: Scott Plauche/Maria Nay. Produção executiva: William J. Immermann, Jaime Rucker King. Produção: Howard Baldwin, Karen Elise Baldwin, Stuart Benjamin, Taylor Hackford. Elenco: Jamie Foxx, Regina King, Terrence Howard, Kerry Washington, Clifton Powell, Sharon Warren, Larenz Tate, David Krumholtz. Estreia: 29/10/04


6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Taylor Hackford), Ator (Jamie Foxx), Montagem, Figurino, Mixagem de Som
Vencedor de 2 Oscar: Ator (Jamie Foxx), Mixagem de Som
Vencedor de 2 Bafta Awards: Ator (Jamie Foxx), Som
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator Comédia/Musical (Jamie Foxx)

Cinebiografias costumam ser tão benevolentes com seus homenageados que chegam a irritar. Dificilmente a história de uma personalidade chega às telas de cinema sem as necessárias licenças poéticas – maneira bonita de dizer que os podres foram jogados para debaixo do tapete. Por isso não deixa de ser um alívio perceber que “Ray”, a história do cantor Ray Charles, dirigida por Taylor Hackford tenta ao máximo expor tanto os defeitos quanto as qualidades de seu protagonista. Mesmo que o próprio Charles tenha sido consultor do filme antes de morrer pouco antes de seu lançamento, o filme de Hackford mostra tanto seu lado de artista talentoso quanto sua relação conflituosa com a esposa e as amantes e os problemas sérios com heroína, que quase o levaram à ruína.
        
A trama começa em 1948 quando Charles chega em NY e logo começa a apresentar-se em bares enfumaçados. Protegido e adotado como amante de sua primeira agente, logo ele passa a fazer mais e mais sucesso, deixando de ser coadjuvante e passando a astro incontestável. Enquanto começa a subir na carreira, ele se casa com a doce, com quem tem dois filhos e se envolve com a difícil Margie (a ótima Regina King), que não pretende ser apenas mais uma de suas mulheres. Brigando pelos direitos autorais de sua música, afundado no vício em drogas e até mesmo banido de cantar na Georgia (por recusar-se a cantar para um público segregado), Ray Charles tanto frequenta as páginas de música dos jornais quanto as policiais.

        

Apoiado em um roteiro nunca condescente escrito por James L. White e uma trilha sonora espetacular – cortesia da música do próprio biografado – o filme de Hackford tem qualidades inegáveis. A fotografia que capta com perfeição o clima da época em que se passa a história, os figurinos discretos mas impecáveis e o elenco coadjuvante em sintonia absoluta saltam à vista de qualquer fã de cinema e música. Mas é o trabalho inesquecível de Jamie Foxx que faz de “Ray” o grande filme que ele se tornou: a promessa acenada em “Um domingo qualquer” realmente se cumpriu e Foxx entregou a atuação de sua vida, merecidamente premiada com o Oscar de melhor ator. É impossível deixar de ver Ray Charles quando Foxx está em cena, tamanha é a sua entrega ao papel, tamanha é sua imersão na personalidade complexa e traumatizada do cantor. Fisicamente idêntico ao verdadeiro músico, Foxx ainda consegue imitar seus trejeitos sem parecer meramente um imitador: em cena está um grande ator, capaz de transmitir sentimentos e emoções verdadeiras como se realmente fosse outra pessoa. Mesmo que toda a equipe de “Ray” seja digna de calorosos aplausos é Jamie Foxx quem conduz o verdadeiro espetáculo.

JOGOS MORTAIS

JOGOS MORTAIS (Saw, 2004, Evolution Entertainment, 103min) Direção: James Wang. Roteiro: James Wang, Leigh Whannell. Fotografia: David A. Armstrong. Montagem: Kevin Greutert. Música: Charlie Clouser. Figurino: Jennifer Soulages. Direção de arte/cenários: Julie Berghoff/Nanet Harty. Produção executiva: Peter Block, Jason Constantine, Stacey Testro. Produção: Mark Burg, Gregg Hoffman, Oren Koules. Elenco: Cary Elwes, Leigh Whannell, Danny Glover, Monica Potter, Tobin Bell, Dina Meyer, Michael Emerson, Ken Leung. Estreia: 19/01/04 (Festival de Sundance)

Sempre ansiosos por filmes de terror que podem tornar-se franquias, os estúdios de Hollywood devem ter ficados salivando com o sucesso surpreendente de “Jogos mortais”: feito com pouco mais de um milhão de dólares, o filme, criado por dois jovens amigos, rendeu mais de 55 milhões somente em território americano, abrindo um caminho milionário para uma série que não parece ter intenção de acabar tão cedo. Utilizando alguns clichês do gênero e adicionando a eles um visual menos sutil e mais violento, o primeiro capítulo de “Jogos mortais” dá o pontapé inicial a uma série de pesadelos cinematográficos que fazem a festa dos fãs de filmes sanguinolentos.
       
“Jogos mortais” começa quando dois estranhos acordam acorrentados em um banheiro sujo e isolado. O médico Lawrence Gordon (Cary Elwes, péssimo como sempre) e o fotógrafo Adam (Leigh Whanell, o roteirista do filme) aparentemente não se conhecem e não tem a menor idéia dos motivos que os levaram até a situação onde se encontram. Tampouco conhecem a identidade do homem suicida que jaz a seu lado, com a cabeça envolta em sangue. Um gravador e duas fitas cassetes lhe contam o que está acontecendo: um psicopata conhecido como Jigsaw os sequestrou e lhes dá seis horas para cumprir suas instruções, ou seja, Gordon precisa matar Adam, ou então sua mulher e filha serão assassinadas. Enquanto tenta encontrar uma saída, o médico explica ao fotógrafo que o criminoso arma jogos violentos para matar suas vítimas, que na verdade acabam morrendo por suas próprias mãos. O próprio Gordon já foi suspeito de ser o assassino, e é perseguido por um obcecado ex-policial (Danny Glover) que tenta provar sua culpa.

        

Dois elementos cruciais diferenciam “Jogos mortais” dos filmes de horror comuns: primeiro, a violência explícita, que não poupa o público de presenciar mortes atrozes e graficamente realistas – o que ficaria ainda mais evidente em suas continuações – e depois, o clima claustrofóbico impresso pelo cineasta James Wan, que encontra uma parceria ideal na fotografia de David A. Armstrong, escura, úmida, sem espaço para a luz natural ou qualquer tipo de amenidade visual. Se não houvesse a divisão entre duas histórias – os dois estranhos presos a um destino cruel e o sequestro de mãe e filha investigado por um detetive incansável – provavelmente seria uma experiência ainda mais angustiante. Como está, é um filme forte, tenso e que não destrói suas boas idéias com um desnecessário final feliz, o que faz toda a diferença em uma época em que o humor dilui a tensão e a violência, deixando todos os filmes do gênero com cara de pastiches.

terça-feira

O OPERÁRIO

O OPERÁRIO (The machinist, 2004, Filmax Group, 101min) Direção: Brad Anderson. Roteiro: Scott Kosar. Fotografia: Xavi Giménez. Montagem: Luis de La Madrid. Música: Roque Baños. Figurino: Patricia Monné, Maribel Pérez. Direção de arte/cenários: Alain Bainée/Héctor Gil. Produção executiva: Carlos Fernández, Antonia Nava. Produção: Julio Fernández. Elenco: Christian Bale, Jennifer Jason Leigh, Aitana Sánchez-Gijón, John Sharian, Michael Ironside. Estreia: 18/01/04

 Pelo menos duas personagens de “O operário” tem a mesma opinião sobre o protagonista do filme de Brad Anderson: “Se você fosse mais magro não existiria!” E é exatamente essa a impressão que se tem quando se vê pela primeira vez a imagem de Trevor Reznik, o esquálido personagem-título, vivido pelo inglês Christian Bale. Assustadoramente magro, Bale – pouco antes de ser o novo Batman, criado por Christopher Nolan – dá a sua personagem um visual cadavérico como forma de reiterar seu estado de espírito, de um homem que não dorme há um ano.

Quando “O operário” começa, Reznik vive seus dias de forma praticamente mecânica: com sérios problemas de sono e uma obsessão por limpeza, ele trabalha utilizando maquinário pesado e só tem folga de sua vida vazia quando tem seus encontros com a prostituta Stevie (Jennifer Jason Leigh) e com a garçonete Maria (Aitana Sánchez-Gijon), mãe solteira solitária a quem encontra todas as noites no café do aeroporto onde ela trabalha. A sua existência de ansiedade e exaustão começa a transformar-se ainda mais quando ele passa a ter alucinações com um colega de trabalho que todos juram não existir e a receber estranhos bilhetes, deixados em seu apartamento. Paranoico, ele tenta então descobrir o que está acontecendo com sua vida.

        

Com uma atmosfera que lembra Alfred Hitchcock (a trilha sonora claramente inspirada nas obras de Bernard Herrman) e Kafka, “O operário” é uma grata surpresa para aqueles que procuram um suspense inteligente e intrigante. Sem apelar para soluções fáceis, o roteiro de Scott Kosar encontra na criativa direção de Anderson o viés perfeito. A fotografia de Xavi Gimenez também colabora no clima de pesadelo proposto pelo diretor, que filma quase com frieza, nunca se envolvendo no desespero de seu protagonista, mas ao mesmo tempo empurrando o público para dentro de sua angústia. Apoiado em uma atuação fantástica de Bale, visualmente arrepiante mas igualmente forte e frágil em sua personalidade, “O operário” merece ser descoberto e louvado pelo que realmente é: um suspense fora do comum, que prende a atenção do início ao fim sem nunca decepcionar sua plateia.

sexta-feira

ADORÁVEL JULIA

ADORÁVEL JULIA (Being Julia, 2004, Serendipity Point Films, 104min) Direção: István Szabó, novela de W. Somerset Maughan. Fotografia: Lajos Koltai. Montagem: Susan Shipton. Música: Mychael Danna. Figurino: John Bloomfield. Direção de arte/cenários: Luciana Arrighi/Zoltán Horváth, Attila Koves, Ian Whittaker. Produção executiva: Mark Milln, Marion Pilowsky. Produção: Robert Lantos. Elenco: Annette Bening, Jeremy Irons, Michael Gambon, Bruce Greenwood, Shaun Evans, Lucy Punch, Juliet Stevenson, Miriam Margolyes. Estreia: 03/9/04 (Festival de Telluride)


Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Annette Bening)
Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz Comédia/Musical (Annette Bening)

 Inspirado na história “Theatre”, de W. Sommerset Maughan, esse belo drama romântico do húngaro Istvan Szabo apresenta uma das melhores atuações da sra. Warren Beatty, Annette Bening, que ganhou o Globo de Ouro e foi indicada ao Oscar por seu trabalho. Ela mereceu. Sua Julia Lambert é sem dúvida uma das personagens mais fascinantes e bem escritas da década, e Bening tira de letra a sua complexidade de emoções. De diva aborrecida a mulher apaixonada e daí a uma mulher amargurada e vingativa, Bening desfila pela tela uma paleta completa de sentimentos, o que leva o público a embarcar em sua jornada rumo à vingança com um sorriso nos lábios.
        
Londres, 1938. A atriz Julia Lambert (Annette Bening) é a diva maior dos palcos ingleses. Vivendo um casamento aberto com o diretor Michael (Jeremy Irons), ela conhece e passa a viver um caso com o jovem americano Tom (Shaun Evans), que tem idade para ser seu filho. O romance dos dois convém a ambos, uma vez que Julia torna-se mais feliz e menos deprimida e o rapaz passa a ser praticamente sustentado pela atriz. As coisas mudam de figura quando Tom se apaixona por Avril Chrichton, uma aspirante à estrela e Julia, sentindo-se traída e humilhada planeja uma vingança em grande estilo, no seu próprio terreno: o palco.




Para isso também ajuda todo o trabalho de produção do filme. Com uma primorosa reconstituição de época, uma bela trilha sonora e um elenco coadjuvante afinado, a nova obra de Szabo conquista pela elegância, pela inteligência e pela qualidade que emana em cada cena. Jeremy Irons, apesar de não ter muito o que fazer em cena demonstra seu tradicional estilo cool. Michael Gambon, como uma espécie de anjo da guarda e grilo falante de Julia não poderia estar melhor e Juliet Stevenson, como a camareira da atriz nem precisa de muitos diálogos para mostrar sua competência. Pena que Shaun Evans, na pele de Tom, personagem crucial à trama não cumpra com as expectativas. Apesar de jovem, simpático e sedutor, ele não tem o estofo necessário para viver o pivô de toda a história. No entanto, isso não compromete o belo espetáculo que “Adorável Julia” é, uma bela declaração de amor ao teatro, acima de tudo.

quinta-feira

DIÁRIOS DE MOTOCICLETA

DIÁRIOS DE MOTOCICLETA (Diarios de motocicleta, 2004, FilmFour, 126min) Direção: Walter Salles. Roteiro: José Rivera, livros "De moto pela América Latina", de Ernesto Che Guevara e "Com Che pela América Latina", de Alberto Granado. Fotografia: Eric Gautier. Montagem: Daniel Rezende. Música: Gustavo Santaolalla. Figurino: Beatriz de Benedetto, Marisa Urruti. Direção de arte/cenários: Carlos Conti. Produção executiva: Robert Redford, Paul Webster, Rebecca Yeldham. Produção: Michael Nozik, Edgar Tenenbaum, Karen Tenkhoff. Elenco: Gael Garcia Bernal, Rodrigo de La Serna, Mia Maestro, Jean Pierre Noher. Estreia: 15/01/04 (Festival de Sundance)


2 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Canção ("Al otro lado del rio")
Vencedor do Oscar de Melhor Canção ("Al otro lado del rio")

Che Guevara já virou pop. Sua imagem, já desgastada pela superexposição, não tem a mesma força que tinha nos anos 60, quando era praticamente a encarnação da rebeldia contra as desigualdades sociais. Por que, então, o diretor Walter Salles escolheu justamente Guevara para protagonizar seu projeto seguinte à consagração de “Central do Brasil”? Vai ver porque nas páginas do livro autobiográfico “De moto pela América Latina” esteja a essência do rebelde, a gênese daquele que se tornaria um ícone. E principalmente porque a trama mais uma vez põe as personagens na estrada, assim como acontecia em “Terra estrangeira” e “Central do Brasil”, em que seus protagonistas amadureciam no processo de viajar de um lugar a outro.    
A trama de “Diários de motocicleta” começa quando o estudante de medicina Ernesto Guevara (Gael Garcia Bernal) e seu melhor amigo, Alberto Granado (Rodrigo de La Serna) resolvem viajar pela América Latina a bordo de uma motocicleta velha, a que dão o carinhoso nome de A Poderosa. Enquanto seguem seu caminho e se divertem com suas aventuras e as pessoas com quem cruzam, os dois acabam tomando conhecimento de vários problemas sociais que assolam seu continente e, uma vez chegando a seu destino, um leprosário na Colômbia, descobrem também que não podem continuar de braços cruzados perante tanta desigualdade.

        

Longe do panfletarismo quase mandatório em filmes com “consciência social”, a obra de Walter Salles ganha justamente por não tentar mudar o mundo. Em momento algum de sua narrativa o roteiro de José Rivera deixa de lado sua intenção em contar uma história para forçar uma idéia política. Salles comanda a aventura com mão leve, alternando cenas de extrema beleza plástica – cortesia da fotografia de Eric Gautier – com momentos de excelente bom-humor, principalmente graças ao trabalho sensacional do ótimo Rodrigo de La Serna. Também consegue emocionar, sem apelar, no entanto, para lágrimas fáceis ou cenas piegas. A bela trilha sonora de Gustavo Santaolalla – que inclui a canção vencedora do Oscar “Do otro lado del rio” – colabora para o tom informal e quase documental do filme, que além de tudo conta com uma atuação nada menos do que perfeita do mexicano Gael Garcia Bernal.
      
Na pele de um Che Guevara ainda jovem e idealista, mas sem nenhum ranço político e socialista, Bernal dá um salto gigantesco em sua carreira, em um trabalho minucioso e delicado, nunca tentando ser maior do que seu personagem. Sua química invejável com Rodrigo de La Serna e seu carisma fazem de seu jovem Guevara um personagem inesquecível e quase dá pra vislumbrar, em suas cenas finais, a grande figura histórica que ele viria a ser em poucos anos. “Diários de motocicleta” pode não ser tão emocional quanto “Central do Brasil”, mas é um grande passo em frente de um cineasta talentoso e que tem o maior de todos os dons que um profissional de cinema precisa ter: sabe contar uma história com personagens humanos.

terça-feira

OLGA


OLGA (Olga, 2004, Brasil, 141min) Direção: Jayme Monjardim. Roteiro: Rita Buzzar, livro de Fernando Morais. Fotografia: Ricardo Della Rosa. Montagem: Pedro Amorim. Música: Marcus Viana. Figurino: Paulo Lóes. Direção de arte/cenários: Tiza de Oliveira/Ana Anet, Erika Lovisi, Gilson Santos. Produção executiva: Guilherme Bokel, Rita Buzzar. Produção: Rita Buzzar. Elenco: Camila Morgado, Caco Ciocler, Fernanda Montenegro, Osmar Prado, Jandira Martini, Floriano Peixoto, Mariana Lima, Leona Cavali, Luis Mello, Eliane Giardini, Eliana Guttman, Werner Schunemann, Murilo Rosa. Estreia: 20/8/04

Desde que foi publicada, nos anos 80, a biografia de Olga Benário despertava a cobiça do cinema nacional. Narrada por Fernando Morais, a inacreditável porém verídica história de amor e tragédia da militante comunista judia que teve uma filha com o brasileiro Luis Carlos Prestes tinha todos os elementos de um grande filme: uma trama verdadeira, personagens fortes e um final de levar multidões às lágrimas. Sérgio Rezende, diretor de “Lamarca”, interessou-se pelo projeto e queria Patrícia Pillar no papel principal. O tempo passou, Rezende saiu de cena e Pillar passou da idade para protagonizar. E eis que Jayme Monjardim entra no projeto, e com ele sua descoberta Camila Morgado.
     
Morgado, revelada por Monjardim na minissérie global “A casa das sete mulheres” foi um achado. Além de excelente atriz, tem o tipo físico ideal para a personagem e sua entrega ao papel é nítido em cada cena. Dona de uma beleza clássica, ela empresta glamour, força e determinação a sua visão de Olga Benário. Alemã, oriunda da classe alta, Olga sempre renegou as origens, saindo da casa dos pais (Luis Mello e Eliane Giardini) para juntar-se ao movimento comunista. Foi lá que ouviu falar pela primeira vez em Luís Carlos Prestes (em uma atuação discreta e comovente de Caco Ciocler), conhecido no Brasil como “Cavaleiro da Esperança” por liderar o povo contra o governo ditatorial de Getulio Vargas. Quando recebe a incumbência de ser a responsável pela guarda pessoal de Prestes, Olga sente-se orgulhosa, mas acaba se apaixonando por seu protegido quando eles são obrigados a se fazer passar por um casal em lua-de-mel. O romance prossegue, os planos de Prestes de derrubar o governo falham e ambos são presos. Olga descobre estar grávida, mas é entregue pelo próprio Vargas (vivido por um inspirado Osmar Prado) ao governo nazista.       

        

O apuro visual de Jayme Monjardim é visível em cada cena, em cada enquadramento. A belíssima fotografia de Ricardo Della Rosa não deve nada a qualquer filme americano ou europeu, assim como a reconstituição de época, perfeita em cada e menor detalhe. O elenco escolhido pelo diretor também não podia ser melhor, a ponto de deixar um papel pequeno para a estrela máxima brasileira Fernanda Montenegro – na pele de Leocádia Prestes, a mãe de Luis Carlos, ela brilha intensamente como em qualquer trabalho. Mas as falhas no trabalho de Monjardim também são gritantes. O excesso de closes nos atores e a música grandiloquente e por vezes inadequada de Marcus Vianna são claramente vícios de um diretor criado em televisão, mas que no entanto tem talento e bom gosto em quantidade suficientes para corrigi-los em um próximo e bem-vindo trabalho.
     
Mesmo com seus defeitos – que chegam a incomodar ao público mais exigente – “Olga” é um filme de orgulhar o cinema brasileiro, graças a sua qualidade técnica e sua coragem de tocar em um assunto tão triste e pesado.

COLATERAL

COLATERAL (Collateral, 2004, DreamWorks Pictures/Paramount Pictures, 120min) Direção: Michael Mann. Roteiro: Stuart Beattie. Fotografia: Dion Beebe, Paul Cameron. Montagem: Jim Miller, Paul Rubell. Música: James Newton Howard. Figurino: Jeffrey Kurland. Direção de arte/cenários: David Wasco/Alexandra Reynolds Wasco. Produção executiva: Rob Fried, Peter Giuliano, Chuck Russell. Produção: Michael Mann, Julie Richardson. Elenco: Tom Cruise, Jamie Foxx, Jada Pinkett-Smith, Mark Ruffalo, Javier Bardem, Bruce McGill, Peter Berg, Barry Shabaka Henley, Debi Mazar. Estreia: 06/8/04

2 indicações ao Oscar: Ator Coadjuvante (Jamie Foxx), Montagem

Quem considerava Lestat, o sanguessuga charmoso e amoral de “Entrevista com o vampiro” como o maior vilão da carreira de Tom Cruise não sabe o quanto está errado. Se no filme de Neil Jordan ele apenas seguia seus instintos e sua natureza, em “Colateral”, excelente filme policial de Michael Mann lançado em 2004, o galã número 1 de Hollywood realmente mostra seu lado negro, vivendo um personagem sem o menor grau de bondade e sentimentos. Maniqueísta, sim, mas dentro dos objetivos do filme, funciona às mil maravilhas.
        
No filme, dirigido por um Mann mais pro lado de “Fogo contra fogo” do que de “O informante”, Jamie Foxx (em uma atuação merecidamente indicada ao Oscar de coadjuvante, ainda que seja tão protagonista quanto Cruise) vive Max, um taxista noturno que sonha em ter sua própria empresa de limousines. Uma noite qualquer, que prometia ser tão tranqüila quanto todas as outras, no entanto, lhe reserva uma grande e desagradável surpresa. O misterioso Vincent (vestido de Giorgio Armani e de cabelo grisalho) entra em seu táxi e lhe oferece um bom dinheiro para que lhe sirva durante sua missão de encontrar alguns conhecidos. Max não consegue recusar a generosa oferta, mas logo descobre que as intenções de seu passageiro estão longe de ser nobres: na verdade Vincent é um assassino de aluguel que precisa matar um a um as pessoas que constam de uma lista relacionada ao julgamento de um traficante de drogas. Pego como refém, cabe a Max impedir a matança, proteger-se e defender a promotora do caso (Jada Pinket-Smith), com quem teve um ligeiro flerte em seu táxi.

        

Apesar de ter a estrutura de um filme policial convencional - mas que dribla eficazmente seus clichês, “Colateral” surpreende pela forma como é conduzido por Michael Mann, um diretor cada vez mais à vontade em impor suas idéias dentro do cinemão americano. Não são poucas as seqüências em que a criatividade de Mann sobressai. Todas as cenas em um bar de blues, por exemplo, são de uma inteligência e de uma tensão que merecem aplausos, tanto pelo clima quanto pelos diálogos e pelo trabalho dos atores, Cruise incluído. A fotografia, que mostra uma Los Angeles noturna e a milhas de distância dos tradicionais cartões-postais da cidade, a trilha angustiante e discreta e a edição enxuta – marca registrada dos trabalhos do diretor – colaboram com a excelência do produto final, um policial muito acima da média, que não se prejudica nem mesmo com a meia-hora final, em que a sutileza dá lugar a uma correria típica do cinema pipoca.
        
Prova inconteste do talento de Jamie Foxx e do fato de Tom Cruise conseguir convencer quando bem dirigido, “Colateral” agrada aos fãs do gênero policial por nunca tentar violentar suas regras básicas – o bem contra o mal – e atinge um status de primeira grandeza graças a algumas ousadias – o visual, por exemplo, e o ritmo bem menos acelerado em sua primeira hora. Mereceu o sucesso que fez.

domingo

A SUPREMACIA BOURNE


A SUPREMACIA BOURNE (The Bourne supremacy, 2004, Universal Pictures, 108min) Direção: Paul Greengrass. Roteiro: Tony Gilroy, romance de Robert Ludlum. Fotografia: Oliver Wood. Montagem: Richard Pearson, Christopher Rouse. Música: John Powell. Figurino: Dinah Collin. Direção de arte/cenários: Dominic Watkins/Bernard Henrich. Produção executiva: Doug Liman, Henry Morrison, Jeffrey M. Weiner. Produção: Frank Marshall, Patrick Crowley. Elenco: Matt Damon, Franka Potente, Brian Cox, Julia Stiles, Joan Allen, Karl Urban, Gabriel Mann. Estreia: 15/7/04

No mesmo ano em que “Homem-aranha 2” quebrou a regra de que continuações são sempre inferiores a seus produtos originais, uma outra sequência de um filme de sucesso chegou às telas e mostrou que a maldição só pode ser aplicada quando o objetivo de fazer dinheiro nas bilheterias sobrepõe-se ao talento das pessoas envolvidas no projeto. “A supremacia Bourne”, continuação de “A identidade Bourne”, ganhou novo diretor – Paul Greengrass substituiu Doug Liman – e um fôlego novo, confirmando Matt Damon como um improvável mas competente herói de ação.
      
Enquanto o primeiro filme começava com Jason Bourne (Damon) totalmente às cegas quanto a seu passado dessa vez a coisa é um pouco menos grave no início. Escondido de tudo e de todos, ele está na Índia com sua namorada Marie (Franka Potente) quando passa a ser perseguido por um assassino russo. Obrigado a sair do seu esconderijo depois de uma tragédia, ele ainda se vê às voltas com a acusação de ter assassinado agentes da CIA, uma vez que suas digitais foram encontradas no local do crime. Perseguido pela chefe da agência, a incansável Pamela Landy (a sempre ótima Joan Allen), Bourne tenta provar sua inocência e desbaratar uma conspiração que envolve seu nome, chegando até Moscou.

       

Assim como Doug Liman fez no primeiro filme, o novo diretor Paul Greengrass – egresso de dramas de fundo político com tons de semi-documentário – acerta em não explicar muito ao espectador, deixando-o tão atônito e perdido quanto seu protagonista. Conforme a trama avança e Bourne começa a juntar os pedaços do quebra-cabeça que é sua vida o público vai gradualmente se envolvendo em uma trama inteligente repleta de cenas de ação do mais alto gabarito. Assim como acontecia a perseguição automobilística no primeiro filme pelas apertadas ruas de Paris o segundo capítulo apresenta uma corrida por Moscou que em nada perde para seu antecessor. E Matt Damon continua mostrando porque foi a escolha mais acertada para o papel de Jason Bourne, um James Bond antenado com a nova realidade do cinema e de seu público.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...