sexta-feira

O CURIOSO CASO DE BENJAMIN BUTTON

O CURIOSO CASO DE BENJAMIN BUTTON (The curious case of Benjamin Button, 2008, Warner Bros/Paramount Pictures, 166min) Direção: David Fincher. Roteiro: Eric Roth, conto de F. Scott Fitzgerald. Fotografia: Claudio Miranda. Montagem: Kirk Baxter, Angus Wall. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Jacqueline West. Direção de arte/cenários: Donald Graham Burt/Victor J. Zolfo. Produção: Ceán Chaffin, Kathleen Kennedy, Frank Marshall. Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Taraji P. Henson, Tilda Swinton, Julia Ormond, Elias Koteas. Estreia: 25/12/08

13 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (David Fincher), Ator (Brad Pitt), Atriz Coadjuvante (Taraji P. Henson), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Efeitos Visuais, Maquiagem, Mixagem de Som
Vencedor de 3 Oscar: Direção de Arte/Cenários, Maquiagem, Efeitos Visuais

Um dos mais inventivos e inteligentes cineastas americanos surgidos a partir da década de 90, o americano David Fincher - egresso da indústria do videoclipe, onde assinou trabalhos célebres como "Freedom '90", de George Michael e "Vogue", de Madonna - demorou a ser reconhecido pela Academia de Hollywood, a despeito do prestígio de filmes como "Seven, os sete crimes capitais" e "Clube da luta", ambos estrelados por Brad Pitt e que obtiveram receptividade antagônicas junto à plateia - enquanto o primeiro tornou-se um grande sucesso, a adaptação do anarquista livro de Chuck Palahniuk tornou-se cult movie junto a uma parcela injustamente pequena dos fãs de cinema. Ignorado mesmo pelo excelente "Zodíaco", um drama policial que contava a busca por um dos assassinos seriais mais famosos dos EUA, Fincher só recebeu sua primeira indicação ao Oscar por "O curioso caso de Benjamin Button", filme livremente inspirado no célebre conto de F. Scott Fitzgerald, cujos direitos já haviam sido comprados para o cinema nos anos 70. Finalmente, em 2005, depois de anos de projetos infrutíferos - com nomes como Steven Spielberg, Ron Howard e Spike Jonze cotados para a direção - a bela história de um homem que sofre de uma rara condição que o faz rejuvenescer ao invés de envelhecer.

Trabalhando pela terceira vez com Brad Pitt - assumindo um papel que felizmente não ficou nas mãos de John Travolta e Tom Cruise, que eram as possibilidades quando Howard e Spielberg estavam atrelados ao projeto - Fincher criou uma obra-prima pictoria, repleta de uma poesia visual impressionante e uma qualidade narrativa fascinante que justificaram suas generosas 13 indicações ao Oscar. Se não tivesse batido de frente com o ótimo mas superestimado "Quem quer ser um milionário?" - visita de Danny Boyle ao cinema indiano que fez um arrastão na Academia - seu filme tranquilamente teria saído da cerimônia de premiação com mais estatuetas do que as míseras três conquistadas pela direção de arte, maquiagem e efeitos visuais. Uma história de amor que equilibra com precisão a tecnologia do cinema hollywoodiano com a sensibilidade da prosa de Fitzgerald, expandida pelo texto do premiado Eric Roth - que usa em seu roteiro elementos já vistos em seu oscarizado "Forrest Gump, o contador de histórias", o que deu motivo para várias críticas dos detratores - "O curioso caso de Benjamin Button" é deslumbrante, emocionante e dotado de um clima de melancolia que somente os grandes filmes possuem.


O protagonista que deu a Brad Pitt sua segunda chance de ganhar um Oscar é, provavelmente, um dos personagens mais interessantes da literatura americana do século XX e, na versão de Roth e Fincher - que apresenta algumas diferenças cruciais em relação ao original, desde seu cenário (alterado de Baltimore para Nova Orleans) até detalhes importantes na vida do próprio Button, transformados com o objetivo de aumentar a dramaticidade da premissa central - ele é apresentado como uma mistura de heroi romântico e aventureiro incurável. Abandonado no nascimento pelo pai viúvo - incapaz de lidar com sua condição - e criado pela responsável por um lar para idosos na Nova Orleans do começo do século XX (a excepcional Taraji P. Henson, indicada ao Oscar de coadjuvante), Button aos poucos acostuma-se com sua situação, mesmo quando ela o afasta da mulher que ama. Viajando pelo mundo em um barco pesqueiro, ele passa por situações que o aproximam de pessoas que acabam sendo importantes para ele, com uma excêntrica socialite que sonha atravessar o Canal da Mancha (Tilda Swinton, quase roubando o filme com suas poucas cenas) e, surpreendentemente, até mesmo seu pai.

Fotografado majestosamente por Claudio Miranda - que dá às imagens o tom exato para cada momento de espírito de seu protagonista - "O curioso caso de Benjamin Button" é uma experiência única, capaz de envolver a plateia com um visual estonteante e uma história comovente, interpretada por atores brilhantes e conduzida com mão firme por um dos cineastas mais inteligentes da Hollywood contemporânea. Uma pequena obra-prima.

quinta-feira

GUERRA AO TERROR

GUERRA AO TERROR (The hurt locker, 2008, Voltage Pictures, 131min) Direção: Kathryn Bigelow. Roteiro: Mark Boal. Fotografia: Barry Ackroyd. Montagem: Chris Innis, Bob Murawski. Figurino: George Little. Direção de arte/cenários: Karl Júlíusson/Ameen Al-Masri. Produção executiva: Tony Mark. Produção: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Nicolas Chartier, Greg Shapiro. Elenco: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Guy Pearce, Ralph Fiennes, David Morse, Evangeline Lilly. Estreia: 04/9/08 (Festival de Veneza)

9 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Kathryn Bigelow), Ator (Jeremy Renner), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Edição de Som, Mixagem de Som
Vencedor de 6 Oscar: Melhor Filme, Diretor (Kathryn Bigelow), Roteiro Original, Montagem, Edição de Som, Mixagem de Som

A trajetória de "Guerra ao terror" rumo ao Oscar 2010 - de onde saiu vitorioso em seis categorias, incluindo as duas mais importantes, de filme e direção - não deixa de ser curiosa. Desinteressada em dirigir o roteiro de Mark Boal, a cineasta Kathryn Bigelow (cujo maior sucesso de bilheteria havia sido nos anos 90, com o filme de ação "Caçadores de emoção", com Patrick Swayze e Keanu Reeves) teve de ser convencida por seu ex-marido, James Cameron, a assumir o comando do filme, que ele previa ser "o 'Platoon' da guerra do Iraque". Com filmagens na Jordânia - mascarada como Bagdá - e um orçamento estimado em cerca de meros 15 milhões de dólares, o filme estreou no Festival de Veneza, recebeu elogios calorosos e passou a fazer parte do circuito dos festivais de cinema, só estreando pra valer nos EUA na metade de 2009, passando quase despercebido pelo público sedento pelos filmes-evento do verão americano. Se tivesse estreado em 2008 - ano de sua première na Itália - o trabalho de Bigelow teria chegado à cerimônia da Academia (se fosse indicado) junto com "O curioso caso de Benjamin Button" e o mega-vencedor "Quem quer ser um milionário?", o que dificultaria muito suas chances de vitória. O adiamento de sua estreia e seu subsequente arrastão de prêmios - críticos de Boston, críticos de Chicago, sindicato de diretores, críticos de Las Vegas e Los Angeles - pavimentou seu caminho, porém, para que, mesmo sem uma bilheteria relevante, disputasse o maior prêmio do cinema com o blockbuster dos blockbusters, "Avatar", dirigido justamente pelo mesmo Cameron que jamais imaginaria que perderia seu posto de rei do mundo - ao menos no Oscar - para sua antiga parceira.

Ao narrar a rotina de um grupo de soldados americanos que tem a ingrata missão de desarmar bombas no calor da guerra do Iraque, o roteiro de Boal - que voltaria ao assunto no tenso "A hora mais escura", novamente sob a direção de Bigelow - foge do tradicional maniqueísmo dos filmes do gênero, pouco espaço dando a batalhas entre ianques e iraquianos, preferindo focar-se no dia-a-dia de poucos personagens, cujas vidas fora do campo de batalha só é revelada à audiência em pequenos flashes, como uma espécie de lembranças queridas. É através desses lapsos narrativos que o público fica conhecendo mais a fundo a personalidade de seu protagonista, o sargento William James (o ótimo Jeremy Renner, no papel que lhe deu uma indicação ao Oscar e a chance de ser reconhecido pelo grande público, apesar de já ter participado de filmes de grande porte, como "SWAT"), um homem corajoso mas acima de tudo viciado em adrenalina, o que o coloca imediatamente em rota de colisão com seus colegas de grupo, não tão apaixonados pelo perigo quanto ele.


Cruamente fotografado por Barry Ackroyd - que transmite com exatidão o calor do deserto iraquiano enquanto não deixa escapar uma gota sequer de suor derramado pelos personagens criados por Boal em seu roteiro enxuto e desprovido de julgamentos morais e políticos - "Guerra ao terror" é uma espécie de crônica do conflito no Oriente Médio, um recorte direto e sem firulas de uma guerra vista somente por quem está dentro dela (daí a qualidade do texto, que equilibra realismo e um certo senso de humor inesperado vindo dos frequentes atritos entre James e seus companheiros de missão). Sem deixar de lado uma certa dose de humanismo - como a relação entre o protagonista e um menino vendedor de dvds piratas que acaba sendo o catalisador de uma das sequências mais tensas do filme - o trabalho de Bigelow leva o público a acompanhar cada missão dos personagens com uma tensão crescente, ampliada pela inteligência de situar a trama em um período específico de tempo - até o final coerente e emocionante.

Se "Guerra ao terror" mereceu os seis Oscar que ganhou é uma questão que jamais será unânime - afinal, disputou a estatueta também com filmes importantes como "Bastardos inglórios" e "Distrito 9", que, cada um à sua maneira, subverteram as regras do jogo da indústria cinematográfica com inventividade e talento. Mas é inegável que, apesar do sucesso comercial de "Avatar" (seu principal adversário, que extrapolou os limites da criatividade visual de Hollywood), o filme de Bigelow mostrou que às vezes a simplicidade e relevância política valem mais do que orçamentos milionários. E que - apesar da presença de alguns nomes de peso, com Guy Pearce e Ralph Fiennes em participações especialíssimas - atores, mesmo os pouco conhecidos, valem mais do que efeitos visuais.

quarta-feira

TINHA QUE SER VOCÊ

TINHA QUE SER VOCÊ (Last chance Harvey, 2008, Overture Films, 93min) Direção e roteiro: Joel Hopkins. Fotografia: John de Borman. Montagem: Robin Sales. Música: Dickon Hinchliffe. Figurino: Natalie Ward. Direção de arte/cenários: Jon Henson/Robert Wischhusen-Hayes. Produção executiva: Jawal Nga. Produção: Tim Perell, Nicola Usbourne. Elenco: Dustin Hoffman, Emma Thompson, Eileen Atkins, Kathy Baker, Liane Balaban, James Brolin. Estreia: 25/12/08 

Caso raro entre os filmes românticos americanos - que privilegia a juventude e a previsibilidade em detrimento de personagens interessantes - a comédia "Tinha que ser você" é o perfeito exemplo de que nem só de mulheres casadoiras e rapazes indecisos vive o cinema. Ao contar uma história simples e desprovida de quaisquer artifícios obtusos para conquistar a plateia, o filme do inglês Joel Hopkins oferece ao público uma hora e meia de uma narrativa que dá atenção ao que falta na maioria dos romances que chegam às telas: bons diálogos, personagens críveis e atuações afiadas de um dupla central que dispensa apresentações.

Depois de trabalharem juntos no elogiado "Mais estranho que a ficção" - mesmo que seus personagens nunca se cruzem em cena - Dustin Hoffman e Emma Thompson resolveram, para o bem do público, que deveriam se reencontrar nas telas. O roteiro de Hopkins pareceu, no mínimo, a melhor desculpa, e pelo que se vê diante do resultado final, a escolha não poderia ter sido melhor. Ambos indicados ao Golden Globe por seus desempenhos, Hoffman e Thompson mostram uma química invejável, com personagens que lhe dão todas as chances de brilhar sem que precisem apelar para as doenças fatais, mortes redentoras ou cenas catárticas que tanto agradam à Academia de Hollywood - que já lhes deram, no total, quatro estatuetas.


Hoffman está confortável no papel do desajustado Harvey Shine, um compositor de singles publicitários que vem sentindo o efeito do tempo em seu trabalho, sendo frequentemente substituído por profissionais mais jovens e "modernos". Em vias de ser demitido, ele embarca para Londres para assistir ao casamento da única filha, com quem mantém uma relação um tanto distante desde seu divórcio, anos antes. Seu inferno astral mostra-se maior do que o imaginado quando ele descobre, já na Inglaterra, que a jovem irá subir ao altar ao lado do padrasto (James Brolin) - o que o deixa ciente de sua solidão. Arrasado, ele esbarra em Kate Walker (Emma Thompson), uma solteirona que trabalha no aeroporto e não tem maiores surpresas na vida. A princípio relutante, ela acaba aceitando o convite de Harvey para acompanhá-lo à festa de casamento e entre eles acaba surgindo uma relação sensível e madura.

Equilibrando cenas de uma doçura emocionante - crédito do trabalho sempre delicado e sutil de Thompson, que comove especialmente quando sua personagem relembra um trauma do passado sem derramar mais do que poucas lágrimas - com um humor discreto, "Tinha que ser você" não foge do tradicional esquema "homem-encontra-mulher-e-depois-de-vários-desencontros-eles-se-acertam", mas o faz com propriedade e inteligência, sem jamais subestimar a capacidade da audiência em envolver-se com personagens mais próximos da realidade do que princesas e milionários excêntricos. Sem apelar para nada mais do que acontecimentos triviais, Joel Hopkins constroi um filme capaz de agradar a todos sem ofender a ninguém, coisa rara em tempos tão agressivos. E ver Hoffman e Thompson juntos é uma delícia rara.

terça-feira

DÚVIDA

DÚVIDA (Doubt, 2008, Miramax Films, 104min) Direção: John Patrick Shanley. Roteiro: John Patrick Shanley, peça teatral homônima do mesmo autor. Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Dylan Tichenor. Música: Howard Shore. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: David Gropman/Ellen Christiansen. Produção executiva: Celia Costas. Produção: Mark Roybal, Scott Rudin. Elenco: Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis. Estreia: 25/12/08

5 indicações ao Oscar: Atriz (Meryl Streep), Ator Coadjuvante (Philip Seymour Hoffman), Atriz Coadjuvante (Amy Adams, Viola Davis), Roteiro Adaptado

Adaptar uma peça de teatro para o cinema é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo que já tem um belo background com a frequente qualidade do texto - e de certa forma um público garantido pelos fãs da versão para os palcos - existe a enorme chance de, com o diretor errado, jamais atingir plenamente suas possibilidades enquanto cinema, transformando-se simplesmente em teatro filmado. Tendo em vista que o único trabalho do dramaturgo John Patrick Shanley para as telas foi o fracassado "Joe contra o vulcão" (90), era de se esperar o pior de "Dúvida", baseado em sua peça teatral premiada com o Pulitzer em 2005. Shanley - vencedor do Oscar de roteiro original por "Feitiço da lua" (87) - é um mestre das palavras, mas havia o temor de que não conseguisse transmitir toda a atmosfera pesada de seu texto na tela grande. O sucesso de crítica e as cinco indicações ao Oscar, porém, mostraram que os temores eram infundados. Extremamente fiel à sua versão original, "Dúvida", o filme, é um vencedor por ao menos um grande motivo: não subestima a inteligência do espectador.

Como não acontece frequentemente em produções de grande alcance, o público é convidado a testemunhar uma batalha de titãs dentro de uma escola católica do Bronx dos anos 60, época em que os EUA conviviam com o racismo explícito e testemunhava as lutas dos negros pelos direitos civis. Esse abismo social tem reflexos dentro da St. Nichols, uma instituição religiosa comanda com mão de ferro pela temida Irmã Aloysius (Meryl Streep), que não precisa mais do que um simples olhar para incutir o medo nos alunos e nas próprias colegas de confinamento. Ciosa de seus deveres como responsável máxima pela escola, a irmã assume para si a missão de provar um crime imperdoável: suspeitando que o carismático Padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) está abusando sexualmente de um aluno - carente, tímido e o mais importante nas circunstâncias, negro) - ela entra em uma cruzada para fazê-lo confessar o delito, não hesitando em apelar para todo e qualquer artifício, sendo assistida pela jovem Irmã James (Amy Adams), que não sabe que atitude tomar em relação ao caso.


Sem deixar-se levar pela tentação de agradar à parcela de público que prefere um entretenimento descerebrado a um trabalho mais complexo, Shanley trata de um assunto polêmico com delicadeza, sensibilidade e discrição, com personagens fabulosos interpretados por atores em dias de grande inspiração (não foi à toa que os quatro atores centrais foram indicados ao Oscar). Não deixa de ser irônico, portanto, que o elenco não é formado pelas primeiras escolhas: Meryl Streep - brilhando com a sua amarga e rígida Irmã Aloysius Beauvier - só chegou ao filme depois que outras grandes atrizes não acertaram a participação (entre elas Sigourney Weaver, Annette Bening, Frances McDormand, Kathy Bates e Anjelica Huston). O mesmo aconteceu com Philip Seymour Hoffman, que só assinou para viver o controverso Padre Flynn depois que Tom Hanks, John Cusack e David Hyde Pierce (!!) foram desconsiderados - e é impossível imaginar que qualquer um deles pudesse ter se saído melhor. Hoffman, por sua vez, fez um lobby gigantesco para a escalação de Amy Adams como a ingênua Irmã James (papel que Natalie Portman recusou) e Viola Davis assumiu o papel que Oprah Winfrey queria desesperadamente (e, mesmo tendo apenas uma longa cena com falas, recebeu uma merecida indicação ao Oscar de coadjuvante, que perdeu para Penelope Cruz em "Vicky Cristina Barcelona").

Como o próprio título sugere, "Dúvida" não dá certezas ao espectador. As cenas - dirigidas sem pressa por Shanley, que permite a seus atores desfrutarem dos diálogos densos e repletos de subtextos - são longas, substanciais e conduzem o público a mais incertezas do que veredictos. Interpretadas com gosto por atores de verdade, elas dão aos fãs de cinema (e teatro) momentos de pura tensão dramática, valorizada pelo uso parcimônico da trilha sonora e da edição. O tom claustrofóbico do texto encontra eco na direção de arte pesada e na fotografia escura do mestre Roger Deakins, que jamais se sobressai à importância do tema e à angústia de um final que foge totalmente do previsível - e por isso mesmo, gruda na memória como apenas os grandes filmes fazem.

segunda-feira

BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS

 BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS (The dark knight, 2008, Warner Bros, 152min) Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Christopher Nolan, Jonathan Nolan, estória de Christopher Nolan, David S. Goyer, personagens de Bob Kane. Fotografia: Wally Pfister. Montagem: Lee Smith. Música: James Newton Howard, Hans Zimmer. Figurino: Lindy Hemming. Direção de arte/cenários: Nathan Crowley/Peter Lando. Produção executiva: Kevin de La Noy, Benjamin Melniker, Thomas Tull, Michael E. Uslan. Produção: Christopher Nolan, Charles Roven, Emma Thomas. Elenco: Christian Bale, Heath Ledger, Maggie Gyllenhaal, Morgan Freeman, Aaron Eckhart, Michael Caine, Cillian Murphy, Anthony Michael Hall. Estreia: 14/7/08

8 indicações ao Oscar: Ator Coadjuvante (Heath Ledger), Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários, Efeitos Visuais, Maquiagem, Edição de Som, Mixagem de Som
Vencedor de 2 Oscar: Ator Coadjuvante (Heath Ledger), Edição de Som
Vencedor do Golden Globe de Ator Coadjuvante (Heath Ledger) 

Em 2005, o cineasta Christopher Nolan provou a todos que o fracasso dos filmes "Batman eternamente" e "Batman & Robin" eram unicamente culpa da concepção equivocada do diretor Joel Schumacher - que os transformou em ridículas alegorias carnavalescas e aniquilou qualquer complexidade da personagem - do que de um possível desinteresse da plateia por novas aventuras do heroi mascarado. Ao recuperar o tom sombrio da criação de Bob Kane, dando a seu "Batman begins" a seriedade apropriada, o autor de filmes criativos e inteligentes como "Amnésia" e "Insônia" não apenas imprimiu ao trabalho sua assinatura como também conquistou uma nova legião de fãs, deixando de lado a versão cartunesca de Tim Burton e cafona de Schumacher. O melhor na história toda, porém, é que esse primeiro capítulo, a despeito de suas inúmeras qualidades, foi apenas o prelúdio para aquele que Nolan transformaria na mais espetacular adaptação da personagem para as telas em seu segundo capítulo: mais longo, mais anabolizado e nem por isso menos inteligente e empolgante, "Batman: o cavaleiro das trevas" é ainda melhor do que o seu original - e, não à toa, rendeu extraordinários 533 milhões de dólares somente no mercado doméstico, tornando-se uma das maiores bilheterias da história. Nada mais justo e merecido!

Ao contrário da maioria das adaptações de quadrinhos para o cinema, que dão prioridade às cenas de ação e a piadinhas de gosto duvidoso, "Batman: o cavaleiro das trevas" - assim como seu antecessor - leva sua trama a sério, injetando complexidade narrativa e densidade psicológica a seus personagens sem sacrificar aquilo que a plateia mais anseia: sequências de pura adrenalina, filmadas com o melhor que um orçamento milionário pode oferecer (e um diretor de imenso talento como Nolan pode proporcionar). Sendo assim, nem mesmo a longa duração do filme (duas horas e meia) consegue atrapalhar a diversão - equilibrada com maestria pela direção, pelo roteiro impecável e pela escalação extraordinária do elenco (que substituiu acertadamente a chatinha Katie Holmes pela ótima Maggie Gyllenhaal no papel crucial de Rachel Dawes, a amada do heroi mascarado que é a catalisadora do clímax inesperado e sanguinolento do final, capaz de surpreender àqueles que não conhecem de cabo a rabo todas as histórias de Batman nos quadrinhos).


Um dos maiores destaques de "Batman: o cavaleiro das trevas" é, sem sombra de dúvida, a atuação nunca aquém de espetacular de Heath Ledger naquele que seria seu último filme completo - ele ainda foi visto no bizarro "O mundo imaginário do Dr. Parnassus", de Terry Gillian, mas não chegou a finalizar as filmagens, morrendo de overdose de drogas autorizadas em janeiro de 2008. Na pele do doentio Coringa, o jovem ator australiano revelado na comédia adolescente "10 coisas que eu odeio em você" deixa para trás a caracterização clássica de Jack Nicholson no filme de 1989 dirigido por Tim Burton e cria um vilão inesquecível já em sua primeira cena - um assalto a banco que termina em violência e que dá o tom exato da história a ser contada. Usando e abusando de trejeitos que dão a seu personagem uma personalidade única, Ledger tornou-se apenas o segundo ator a receber um Oscar póstumo - depois do veterano Peter Finch, de "Rede de intrigas" - em uma premiação que jamais deve ser creditada à emoção dos eleitores: seu trabalho é fascinante, escapando fácil dos clichês do gênero e atingindo um nível poucas vezes vista em filmes do gênero.

E a história, afinal, qual é? Basta dizer que Batman (mais uma vez interpretado por Christian Bale) continua aterrorizando os criminosos de Gotham City, apesar das dúvidas que circundam suas intenções. Quando um novo promotor público, Harvey Dent (Aron Eckhart) é eleito, Bruce Wayne - para quem não sabe a verdadeira identidade do heroi) - respira aliviado, acreditando que as coisas finalmente começarão a mudar em sua metrópole. Suas esperanças começam a mostrar-se infundadas, porém, quando um misterioso fora-da-lei auto-nomeado Coringa surge, disposto a disseminar o caos e a violência - e enfrentar Batman cara a cara.

Apesar da sinopse soar como mais do mesmo, "Batman: o cavaleiro das trevas" tem um roteiro inteligente, que jamais se deixa cair nas armadilhas fáceis de um blockbuster, buscando, pelo contrário, exigir do espectador mais do que o corriqueiro nos filmes do gênero. Essa sua qualidade acabou despertando polêmicas quando a Academia indicou-lhe a oito estatuetas, mas ignorou-o nas categorias mais importantes, como melhor filme e diretor. A gritaria dos fãs de certa forma incentivou o aumento do número de filmes indicados na categoria principal a partir do ano seguinte - em uma tentativa dos acadêmicos de aproximar o público mais jovem da cerimônia de entrega dos prêmios (e que ainda não se mostrou muito eficaz). O fato, porém, é que o filme de Nolan tinha qualidades suficientes para ser lembrado como um dos melhores de seu ano. Pode não ter sido um grande vencedor do Oscar, mas é, certamente, adorado pelos fãs.

sexta-feira

TROVÃO TROPICAL

TROVÃO TROPICAL (Tropic Thunder, 2008, Dreamworks Pictures, 107min) Direção: Ben Stiller. Roteiro: Ben Stiller, Justin Theroux, Etan Cohen, estória de Justin Theroux e Ben Stiller. Fotografia: John Toll. Montagem: Greg Hayden. Música: Theodore Shapiro. Figurino: Marlene Stewart. Direção de arte/cenários: Jeff Mann/Daniel B. Clancy. Produção executiva: Justin Theroux. Produção: Stuart Cornfeld, Eric McLeod, Ben Stiller. Elenco: Ben Stiller, Robert Downey Jr., Jack Black, Tom Cruise, Nick Nolte, Matthew McConaughey, Steve Coogan, Jay Baruchel, Brandon T. Jackson. Estreia: 13/8/08

Indicado ao Oscar de Ator Coadjuvante (Robert Downey Jr.)

Normalmente, quando Hollywood olha para o próprio umbigo e retrata seus bastidores, opta por fazê-lo em dramas autocomplacentes ou cinebiografias de qualidade variadas. Raramente ele busca o riso do espectador, mas quando isso acontece, coisas sensacionais como "Um cilada para Roger Rabbit", de Robert Zemeckis, "Ed Wood", de Tim Burton e "Os picaretas", de Steve Martin - que brincam com a fogueira das vaidades sem perder o carinho por ela - surgem e encantam o espectador inteligente, com piadas certeiras sobre o universo do cinema. Outro exemplar imperdível do gênero é "Trovão tropical", a hilariante comédia com que Ben Stiller provou que tem razoável poder de fogo na indústria, com uma arrecadação doméstica que ultrapassou os 100 milhões de dólares: a despeito de seu orçamento milionário ter ultrapassado os 90 milhões, o filme de Stiller foi um êxito incontestável de bilheteria.

Incontestável e merecido. "Trovão tropical" é uma comédia excepcional e corajosa, que não poupa ninguém dos bastidores do cinema, apontando sua metralhadora giratória para os atores comerciais com ambições mais sérias, para produtores gananciosos, agentes irresponsáveis, cineastas metidos a autorais, os prêmios da Academia e até mesmo para a força do cinema americano ao redor do mundo. Irônico e debochado, o roteiro - escrito a partir de uma história imaginada por Stiller e pelo ator Justin Theroux - tira sarro de tudo e de todos a partir de uma premissa que, não fosse totalmente coerente com o universo retratado, seria de um absurdo sem igual: o "Trovão tropical" do título é um filme produzido pelo excêntrico Les Grossman (Tom Cruise, irreconhecível e muito engraçado), que quer realizar o seu próprio épico sobre a guerra do Vietnã e para isso não mede esforços para reunir uma equipe invejável. O diretor,  Damien Cockburn (Steve Coogan), é um cineasta cult, metido a intelectual e os atores não ficam atrás: o conceituado Kirk Lazarus (Robert Downey Jr) é um veterano vencedor de 4 Oscar adepto do "método" (a ponto de fazer um tratamento dermatológico e escurecer a pele para interpretar um soldado negro), o outrora astro de filmes de ação Tugg Speedmn (o próprio Stiller) quer salvar a carreira depois de uma mal-sucedida investida em um drama pelo qual ambicionava um Oscar, e Jeff Portnoy (Jack Black) tenciona deixar pra trás sua carreira de comediante em um papel sério - e enfrenta problemas com seu vício em drogas.


A bagunça começa quando Damien morre ao pisar em uma mina escondida e os atores, julgando que estão sendo testados pela produção, continuam atuando sem perceber que estão sendo perseguidos por nativos do lugar - que tampouco sabem que eles são apenas atores e não soldados americanos com objetivos militares. Enquanto isso, em Hollywood, Rick Peck (Matthew McConaughey), o agente de Speedman, tenta de todas as maneiras possíveis, proporcionar a seu cliente os luxos a que está acostumado - mesmo batendo de frente com a arrogância do produtor Grossman, que nem de longe imagina que Speedman foi pego como refém de um grupo violento de soldados asiáticos.

Equilibrando com inteligência um humor visual com referências espertas ao mundo das celebridades - não é preciso muito conhecimento de causa para reconhecer em Jeff Portnoy um pouco de Eddie Murphy, por exemplo - "Trovão tropical" conquista por não ter medo de rir das entranhas da própria Hollywood, com seu egocentrismo e sua tendência a louvar mercenários em detrimento de reais artistas - ainda que mesmo esses sejam alvo de piadas inclementes. Além disso, dá a Robert Downey Jr. um dos papéis essenciais à sua carreira - que surgiu juntamente com "Homem de ferro" e "Zodíaco" em sua ressurreição artística. Merecidamente indicado a um Oscar de coadjuvante (que perdeu para a impressionante atuação de Heath Ledger em "Batman, o cavaleiro das trevas"), Downey é, dentre tantas coisas boas, a maior qualidade de "Trovão tropical". E isso não é pouco!

quinta-feira

ERA UMA VEZ

ERA UMA VEZ (Era uma vez, 2008, Conspiração Filmes/Globo Filmes, 117min) Direção: Breno Silveira. Roteiro: Patricia Andrade. Fotografia: Dudu Miranda, Paulo Souza. Montagem: Eduardo Hartung. Música: Berna Ceppas. Figurino: Cláudia Kopke. Direção de arte/cenários: Rafael Ronconi. Produção executiva: Pedro Guimarães, Leonardo Monteiro de Barros, Luiz Noronha, Eliana Soárez. Produção: Pedro Buarque de Holanda, Breno Silveira. Elenco: Thiago Martins, Vitória Frate, Rocco Pitanga, Paulo César Grande, Cyria Coentro. Estreia: 25/7/08

Depois do sucesso sem precedentes de "Cidade de Deus" - elogiado pela critica, prestigiado pelo público e reconhecido internacionalmente com quatro indicações ao Oscar - um novo filão foi descoberto pelos produtores brasileiros. De 2002 em diante o que não faltou na programação das salas de cinema foram filmes passados nas favelas do Rio de Janeiro, tratando da desigualdade social da cidade maravilhosa e suas trágicas consequências. Tendo isso em vista não chegou a ser surpreendente quando Breno Silveira - que assinou o bem-sucedido comercialmente "Dois filhos de Francisco" - anunciou que seu filme seguinte seria uma versão moderna e adaptada do clássico "Romeu e Julieta" tendo como protagonista um casal de classes sociais díspares que precisa lidar com a violência dos morros e o preconceito (nada velado) de suas famílias. "Era uma vez" - o produto final - não teve a mesma repercussão nem da obra-prima de Fernando Meirelles nem da história de Zezé di Camargo & Luciano, mas é um drama romântico honesto, sensível e realista capaz de emocionar sem apelar para excessos de nenhum tipo.


O protagonista da história é André (vivido por Thiago Martins, um ator criado na favela que demonstra um conhecimento de causa aliado ao talento). Traumatizado pela morte violenta do irmão mais velho, que testemunhou ainda criança, André vive com a mãe no morro do Cantagalo, trabalha em um quiosque de cachorro-quente no calçadão de Ipanema e convive com a ausência de outro irmão (Rocco Pitanga), preso injustamente. Honesto e de boa índole, André é apaixonado por Nina (Vitória Frate), uma bela, loura e rica menina de condomínio que frequenta a praia diante de seu quiosque. O que poderia ser um sonho impossível torna-se realidade quando ele consegue conquistá-la apesar de suas diferenças e os dois iniciam um belo e idílico romance - que tem como pano de fundo as lindas praias cariocas e a vista exuberante dos morros e como trilha sonora o samba e os bailes funk. A paz entre os dois começa a ser ameaçada, porém, quando o pai de Nina, um executivo falido (interpretado por Paulo Cesar Grande), passa a implicar com o namoro, que também não é visto com simpatia pela mãe do rapaz (Cyria Coentro). A saída do irmão de André da cadeia - e sua subsequente ascensão no tráfico de drogas no morro onde vivem - acelera a tragédia.



Especialista em contar suas histórias de forma a envolver o público, Breno Silveira narra seu "Era uma vez" sem firulas estilísticas, preferindo ater-se basicamente à trama, que, se não apresenta novidades em seu roteiro, ao menos trata com respeito seus personagens e o público. Centrando sua força no destino chocante e previsível de seu par romântico - cujo desfecho é preparado lentamente até o terço final, quando o suspense assume o comando - o filme conquista a audiência ao apresentar uma história simples e direta, que toca o coração justamente por ser despretensioso e por retratar uma realidade familiar a qualquer brasileiro com um mínimo de informação. Ainda que por vezes resvale em clichês - fato inevitável quando se fala em releituras do clássico shakespereano - a obra de Silveira acerta no que há de mais importante: a emoção.


Boa parte do sucesso de "Era uma vez" em ser um filme honesto, porém, vem da atuação de Thiago Martins, que transmite em medidas exatas todos os tons de seu André. Por vezes ingênuo, por vezes portador de uma raiva contida, e em muitos momentos romântico e batalhador, André é um personagem escrito sob medida para o jovem ator, que faz jus à confiança do diretor em um trabalho impecável. É graças principalmente ao carisma de Thiago - que tem uma boa química com a delicada Vitória Frate - que a plateia se deixa seduzir por um drama nitidamente realizado para emocionar. "Era uma vez" é um belo e simples filme de amor que cumpre o que promete - objetivo que muitos filmes bem mais ambiciosos falham em atingir.

quarta-feira

NOITES DE TORMENTA

NOITES DE TORMENTA (Nights in Rodanthe, 2008, Warner Bros, 97min) Direção: George C. Wolfe. Roteiro: Ann Peacock, John Romano, romance de Nicholas Sparks. Fotografia: Affonso Beato. Montagem: Brian A. Kates. Música: Jeanine Tesori. Figurino: Victoria Farrell. Direção de arte/cenários: Patrizia von Brandenstein/James Edward Ferrell Jr. Produção executiva: Bruce Berman, Doug Claybourne, Dana Goldberg, Alison Greenspan. Produção: Denise Di Novi. Elenco: Richard Gere, Diane Lane, Christopher Meloni, Viola Davis, Scott Glenn, James Franco. Estreia: 26/9/08

Um dos mais populares escritores românticos americanos, Nicholas Sparks nem se dá ao trabalho de mudar a fórmula de seus livros, alterando, quando muito, a faixa etária de seus protagonistas - ou, no caso de "Diário de uma paixão", alternar duas tramas paralelas com casais de gerações diferentes. Seguindo a linha de suas narrativas mais maduras, o drama "Noites de tormenta" reune a dupla Richard Gere e Diane Lane (do polêmico "Infidelidade") em mais um romance açucarado e previsível - que, no entanto, é valorizado pela presença carismática da dupla, que consegue dar dignidade até mesmo ao amontoado de clichês dos quais a direção inexperiente de George C. Wolfe - acostumado com especiais de televisão - não se desvia.

A trama de Sparks já começa com um clichê básico: Adrienne Willis (Diane Lane, boa atriz relegada aos mesmos personagens desde que foi indicada ao Oscar por "Infidelidade") é uma mulher separada que recebe do ex-marido (Christopher Meloni, da série "Oz") a proposta de uma reconciliação justamente quando está saindo em viagem para cuidar da pousada de uma amiga (Viola Davis), que vai tirar um fim-de-semana de folga com o namorado. Isolada na pousada - que fica em uma idílica cidade litorânea da Carolina do Norte - Adrienne tem a companhia apenas de um único hóspede, o médico Paul Flanner (Richard Gere, canastrão como sempre, mas incapaz de decepcionar às fãs mais ardorosas), que está na cidade com o objetivo de desculpar-se com o viúvo de uma antiga paciente, que morreu em suas mãos. Não é preciso ser gênio para adivinhar que os dois irão começar a se entender maravilhosamente, irão se apaixonar e, depois que precisarem retomar suas vidas, o destino irá aprontar das suas.


Apesar de seguir completamente as regras do jogo de Sparks - que incluem cenários de sonho, romances proibidos, finais lacrimosos e personagens sem muita profundidade dramática - "Noites de tormenta" não chega a ofender os neurônios da plateia, oferecendo exatamente o que ela procura. Não interessa aos fãs da obra do autor nenhum tipo de elocubração psicológica ou complexidade narrativa, o que faz com que os filmes baseados nela sejam sistematicamente planos e quase maniqueístas. Esse detalhe, porém, não deve incomodar à audiência, que não deixa de inundar as salas de exibição com lágrimas sentidas - ainda que a bilheteria de "Noites de tormenta" não tenha sido o estouro esperado.

Em resumo, "Noites de tormenta" é um veículo para Lane e Gere desfilarem seu charme em um cenário interessante e presentearem seus fãs com personagens feitos sob medida para duas horas de entretenimento sem compromisso. Não é bom, mas passa longe de ser ruim.

terça-feira

O SUSPEITO

O SUSPEITO (Rendition, 2007, New Line Cinema, 122min) Direção: Gavin Hood. Roteiro: Kelley Sane. Fotografia: Dion Beebe. Montagem: Megan Gill. Música: Paul Hepker, Mark Kilian. Figurino: Michael Wilkinson. Direção de arte/cenários: Barry Robison/Jille Azis. Produção executiva: Toby Emmerich, Keith Goldberg, David Kanter, Edward Milstein, Keith Redmon, Paul Schwake, Michael Sugar, Bill Todman Jr.. Produção: Steve Golin, Marcus Viscidi. Elenco: Reese Witherspoon, Meryl Streep, Jake Gyllenhaal, Peter Sarsgaard, Alan Arkin, J.K. Simmons, Omar Metwally, Igal Naor. Estreia: 07/9/07 (Festival de Toronto)

Tido como um dos prováveis candidatos ao Oscar 2008 desde que estreou no Festival de Toronto em setembro de 2007, o drama político "O suspeito" viu suas expectativas frustradas quando foi solenemente ignorado quando a lista de indicações foi divulgada, quatro meses mais tarde. Talvez devido a seu tema incendiário e polêmico - os métodos pouco ortodoxos da CIA de interrogar suspeitos de terrorismo mesmo sem evidências sólidas - o filme do sul-africano Gavin Hood tampouco encontrou seu público, passando batido nas bilheterias americanas (seu principal alvo) e sendo pouco comentado no resto do mundo. Seu relativo fracasso, porém, não deixa de ser injusto: na tradição dos thrillers políticos do grego Costa-Gavras, "O suspeito" é um filme forte, inteligente e bem realizado, com muito mais a dizer do que se poderia esperar de uma produção hollywoodiana - mesmo que envolto em um pacote comercialmente atraente.

Apesar de ter seu elenco liderado por Reese Witherspoon em seu primeiro papel pós-Oscar - e de ela ser basicamente uma atriz de filmes menos sérios - "O suspeito" não tem nada de leve ou fácil, ainda que provavelmente tenha retratado de forma bem atenuada muito da crueldade a qual são submetidas as pessoas que tem o azar de cair na suspeita dos paranoicos agentes da CIA pós-11 de setembro. Apesar das cenas de tortura serem dirigidas de maneira a não chocar o grande público, é difícil não se deixar envolver com a angústia transmitida pela direção segura de Hood - que também assinou "Infância roubada", vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2005 - tanto nas sequências fisicamente violentas quanto nas potentes cenas dramáticas, que extraem o melhor de seus atores, todos do mais alto gabarito (a ponto de Meryl Streep ter um papel relativamente pequeno, ainda que crucial à história contada pelo complexo roteiro de Kelley Sane.


Quando o filme começa, o egípcio Anwar El-Ibrahimi (Omar Metwally) está a caminho dos EUA para reencontrar a esposa, Isabella (Reese Witherspoon) -prestes a dar à luz - o filho pequeno e a mãe, depois de uma viagem de negócios à África. Assim que chega ao país, porém, ele é imediatamente sequestrado por um grupo de agentes da CIA, acusado de ligações com um terrorista suspeito de um atentado com vítimas americanas. Mantido sob custódia do governo em um local secreto - graças a ordens da senadora linha-dura Corrine Whitman (Meryl Streep) - Anwar passa a ser violentamente torturado por Abasi Fawal (Yigal Naor), apesar das tentativas do jovem analista político Douglas Freeman (Jake Gyllenhaal) de diminuir o estrago. Assumindo o cargo de liderar a operação depois da morte de um colega, Freeman busca o diálogo como forma de entendimento, mas não consegue impedir os absurdos da situação. Enquanto isso, Isabella, desesperada com a situação, procura um antigo colega de faculdade, Alan Smith (Peter Sarsgaard), que é assistente de um senador (Alan Arkin), buscando a localização do marido.

A teia de dramas criada por Sane também tem desdobramentos em outro nível que não o familiar e o político, o que lhe dá um sabor extra: no decorrer da busca de Isabella pelo paradeiro do marido - trama que remete imediatamente ao clássico "Missing", estrelado por Sissy Spacek e Jack Lemmon - o público é também testemunha da história de amor entre dois jovens, Fatima (Zineb Oukach), filha de Abasi, e Khalid (Moa Khouas), um rapaz muçulmano com um trágico passado de violência familiar que o faz odiar o pai da namorada. Essa trama paralela - que talvez confunda o espectador em um primeiro momento - se revela de suma importância no desfecho do filme, comprovando o talento de Hood em manipular a atenção de seu público em várias frentes. Sob seu comando, o que poderia parecer um desvio de foco acaba se tornando uma surpresa chocante.

Mesmo que não tenha sido o sucesso que deveria, "O suspeito" é um dos mais interessantes filmes americanos a discutir a política de segurança americana depois dos atentados às Torres Gêmeas. E é também um belo exemplo de como cineastas estrangeiros à Hollywood podem se adequar à indústria sem perder sua sensibilidade e identidade próprias.

sexta-feira

O ORFANATO

O ORFANATO (El orfanato, 2007, Grupo Rodar, 105min) Direção: J. A. Bayona. Roteiro: Sérgio G. Sanchez. Fotografia: Óscar Faura. Montagem: Elena Ruiz. Música: Fernando Velázquez. Figurino: Maria Reyes. Direção de arte/cenários: Josep Rosell/Iñigo Navarro. Produção executiva: Guillermo Del Toro. Produção: Álvaro Augustín, Joaquín Padró, Mar Targarona. Elenco: Belén Rueda, Fernando Cayo, Roger Príncep, Geraldine Chaplin, Mabel Rivera, Montserrat Carulla, Edgar Vivar. Estreia: 20/5/07 (Festival de Cannes)

Desde que "O sexto sentido" e "Os outros" fizeram a festa dos produtores, filmes de terror com temática adulta e séria, que dispensam piadas infames e sátiras ao gênero, voltaram a ser respeitadas pela crítica e pelo público, sedento por momentos de tensão na poltrona do cinema. E nem só Hollywood embarcou nessa retomada. Produzido por Guillermo Del Toro e dirigido pelo espanhol J. A. Bayona, o aterrador "O orfanato" estreou no Festival de Cannes de 2007, obteve uma ovação em pé por dez minutos e mostrou que não é preciso tradição para arrepiar a plateia, quando se tem uma boa história e talento para realizá-la.

"O orfanato" é um filme de terror nos moldes clássicos, espalhando pela tela elementos conhecidos dos fãs do gênero, como uma mansão aparentemente assombrada, idosas assustadoras, crianças com sensibilidade paranormal e uma heroína disposta a qualquer sacrifício para manter a sanidade física e mental. O que poderia ser um festival de clichês, no entanto, torna-se uma produção elegante e sóbria graças a um roteiro que não busca o susto fácil, preferindo - para deleite da audiência - o caminho menos previsível para contar sua história. A confiança de Bayona no roteiro enxuto de Sérgio G. Sanchez é tanta que o cineasta prescinde até mesmo de um clímax barulhento: tudo é resolvido placidamente, sem gritos e sem a sanguinolência que caracterizou o gênero nos anos 80. Mérito da trama bem desenvolvida, da direção firme e da atuação da incrível Belén Rueda, que carrega o filme nas costas com um trabalho nunca aquém de fabuloso.

Quando o filme começa, Laura, a personagem de Rueda, retorna ao orfanato onde viveu durante a infância com o objetivo de reativá-lo e ter um lugar tranquilo para criar o pequeno Simon (Roger Príncep), que é portador do virus da AIDS e desconhece sua condição de filho adotivo. Casada com Carlos (Fernando Cayo), um médico com quem mantém uma relação saudável e amorosa, Laura tenciona oferecer a crianças órfãs um lar como o que ela mesma teve em seu passado, mas o desaparecimento misterioso de Simon no dia da inauguração do orfanato destroi radicalmente seus planos. Abalada com o sumiço do menino, Laura passa a desconfiar que os amigos imaginários do seu filho podem estar envolvidos, bem como a misteriosa Benigna (Montserrat Carulla), antiga funcionária da mansão que esconde um apavorante passado relacionado às crianças. Desesperada, ela entra em contato com a poderosa médium Aurora (Geraldine Chaplin), que vê na casa uma atmosfera densa e aterrorizante.

Utilizando com maestria o desenho de som e a direção de arte - que contribuem para o clima de constante tensão da narrativa - "O orfanato" aposta na inteligência do espectador para assustar e deixar os nervos em frangalhos. Atinge todos os seus objetivos e ainda consegue emocionar com um final coerente e melancólico. Uma pequena obra-prima!

quinta-feira

JOGO DE CENA

JOGO DE CENA (Jogo de cena, 2007, Matizar/VideoFilmes, 100min) Direção: Eduardo Coutinho. Fotografia: Jacques Heuiche. Montagem: Jordana Berg. Produção executiva: Guilherme Cezar Coelho, João Moreira Salles, Mauricio Andrade Ramos. Produção: Bia Almeida, Raquel Freire Zangrandi. Elenco: Andrea Beltrão, Fernanda Torres, Marília Pera. Estreia: 09/11/07

A trágica e inesperada morte de Eduardo Coutinho no último dia 02 de fevereiro calou uma das mais instigantes e brilhantes vozes do documentário brasileiro. Coutinho, que assinou a direção do clássico "Cabra marcado para morrer" sempre pautou sua obra pelo carinho com seus entrevistados, pelo respeito pelas histórias contadas e principalmente pela inteligência com que conduzia suas entrevistas, repletas de calor humano e sinceridade. Se em "Edifício Master" ele deu um passo à frente em sua obra - focando sua atenção para pessoas aparentemente comuns - foi com "Jogo de cena", fascinante estudo sobre a arte do ator e o estoicismo humano que ele atingiu seu ponto máximo. Embaralhando as cartas da ficção com as da realidade, o mestre Coutinho construiu uma das mais fabulosas obras de sua genial filmografia.

A ideia do documentário em si já é instigante: 83 mulheres, habitantes do Rio de Janeiro, responderam a um anúncio de jornal para que se encontrassem com a produção para contar alguma história de sua vida. As histórias selecionadas foram gravadas pelas próprias mulheres diante das câmeras de Coutinho e em seguida, atrizes consagradas (Fernanda Torres, Marilia Pera, Andrea Beltrão) contavam essas mesmas histórias como se fossem delas. Pronto. A base é essa. O que surpreende, encanta e comove é a forma com que o diretor explora essa dualidade entre a realidade e sua imitação sem fazer nada mais do que simplesmente deixar que as histórias - quase todas de forte impacto emocional - falem por si mesmas, ora disfarçadas por um oportuno senso de humor, ora sublinhadas por sentidas lágrimas de tristeza ou emoção. É hipnotizante a forma com que a edição do filme intercala a verdade (as pessoas "reais") com seu arremedo (as atrizes, buscando atingir as notas da vida real), mostrando ao público tanto a vida como ela é quanto um ensaio genial sobre os bastidores da criação artística - mesmo que as personagens não sejam exatamente personagens.


Sendo assim, Coutinho apresenta à plateia a triste história de uma jovem mãe que se vê diante da perda do filho recém-nascido (e depois representada por uma comovida Andrea Beltrão) e uma mulher com dificuldades de relacionamento com a filha que mora nos EUA (posteriormente interpretada por Marilia Pera), assim como nubla a divisão entre real/fictício com a narrativa de uma jovem atriz negra que superou as dificuldades raciais e econômicas graças ao teatro e com o toque de mestre de apresentar uma história final contada por uma atriz desconhecida do grande público e por uma mulher comum: quem é quem é a grande questão que faz com que "Jogo de cena" se transforme de um filme em uma experiência rica e avassaladora.

Um mergulho na alma feminina e nas técnicas de interpretação de grandes atrizes, "Jogo de cena" é um dos mais apaixonantes filmes nacionais da história, ao revelar à plateia as entranhas de suas "personagens" sem nenhum tipo de julgamento ou manipulação. E é também fascinante para qualquer fã de cinema, teatro ou seres humanos com todas as suas imperfeições. Absolutamente impecável!

quarta-feira

O ULTIMATO BOURNE

O ULTIMATO BOURNE (The Bourne ultimatum, 2007, Universal Pictures, 115min) Direção: Paul Greengrass. Roteiro: Tony Gilroy, Scott Z. Burns, George Nolfi. Fotografia: Oliver Wood. Montagem: Christopher Rouse. Música: John Powell. Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Peter Wenham/Tina Jones. Produção executiva: Doug Liman, Henry Morrison, Jeffrey M. Weiner. Produção: Patrick Crowley, Frank Marshall, Paul L. Sandberg. Elenco: Matt Damon, Joan Allen, David Straithairn, Julia Stiles, Paddy Considine, Albert Finney, Scott Glenn, Daniel Bruhl. Estreia: 25/7/07

Vencedor de 3 Oscar: Montagem, Edição de Som, Mixagem de Som

Caso raro dentro da indústria dos filmes de ação hollywoodianos, a trilogia Bourne, inspirada na série de livros do escritor Robert Ludlum conseguiu uma façanha e tanto: não apenas manteve o interesse do público por seus três filmes (interesse que inclusive aumentava a cada lançamento) como superou toda e qualquer expectativa em termos de qualidade narrativa e técnica. Um exemplo perfeito dessa afirmação é "O ultimato Bourne", seu capítulo final, que não apenas rendeu mais de 220 milhões de dólares nas bilheterias americanas como agradou em cheio à crítica, à audiência e até mesmo à Academia, que lhe ofereceu em troca 3 estatuetas do Oscar, que sublinharam suas qualidades técnicas impressionantes. Se os dois primeiros filmes já eram sensacionais, o terceiro é absolutamente impecável.

Dessa vez, o agente secreto Jason Bourne (interpretado a cada filme com mais intensidade por um Matt Damon que nunca esquece, mesmo em momentos de quebradeira, que é um ator sério e talentoso) é tirado de seu anonimato graças às investigações do repórter investigativo inglês Simon Ross (Paddy Considine), que tenta trazer à tona os segredos de uma operação secreta da CIA, o Projeto Blackbriar - que vem a ser um passo à frente da antiga missão de Bourne, a Operação Treadstone. A busca de Ross pela verdade coincide com uma falsa acusação de traição contra Bourne, que, na tentativa de provar sua inocência e descobrir a verdade sobre seu passado (que continua vindo em lembranças intermitentes), conta com a ajuda inesperada de Pam Landy (Joan Allen), diretora da agência, que deseja manter a integridade do órgão de segurança.


Equilibrando cenas de tensão constante - em especial uma perseguição de tirar o fôlego sobre telhados e a tentativa de Bourne em salvar a vida de Simon Ross em meio à multidão que frequenta as estações de Londres - com momentos dramáticos importantes para o desfecho da trilogia (como o encontro com o irmão de Marie (Franka Potente), "O ultimato Bourne" atinge sua excelência por atingir a perfeita mistura entre um roteiro inteligente, atuações seguras de um elenco de feras (Damon, Joan Allen, David Straithairn) e uma técnica invejável. A edição espetacular de Christopher Rouse - premiada com um Oscar justíssimo - não dá folga ao espectador, praticamente jogando-o no meio das eletrizantes sequências de luta, coreografadas de forma a impressionar a audiência sem precisar de efeitos especiais mirabolantes. Seu realismo é um ponto mais do que positivo, por destacar o tom seco e direto da direção de Paul Greengrass - que usa e abusa de câmeras na mão e de sua experiência em filmes de estilo semi-documental para criar uma atmosfera claustrofóbica e tensa mesmo em espaços vastos e planos abertos.

No final das contas, "O ultimato Bourne" encerra com chave de ouro uma série cinematográfica que devolveu ao público o prazer de acompanhar uma boa história recheada de cenas extraordinárias de ação sem que seja preciso abdicar do cérebro. E Jason Bourne, é, com toda certeza, um dos mais fascinantes personagens do cinema de ação vindo de Hollywood. Vai deixar saudades.

terça-feira

ALPHA DOG

ALPHA DOG (Alpha dog, 2006, Sidney Kimmel Entertainment, 122min) Direção e roteiro: Nick Cassavetes. Fotografia: Robert Fraisse. Montagem: Alan Heim. Música: Aaron Zigman. Figurino: Sarah Jane Slotnick. Direção de arte/cenários: Dominic Watkins/Faince MacCarthy. Produção executiva: Robert Geringer, Marina Grasic, Andreas Grosch, Avram Butch Kaplan, Jan Korbelin, Steve Markoff. Produção: Sidney Kimmel, Chuck Pacheco. Elenco: Bruce Willis, Sharon Stone, Emile Hirsch, Justin Timberlake, Ben Foster, Shawn Hatosy, Anton Yelchin, Dominique Swain, Amanda Seyfried, Harry Dean Stanton, Lukas Haas. Estreia: 27/01/06 (Festival de Sundance)

Em 1994, Larry Clark tornou-se um nome quente dentro de Hollywood graças ao controverso "Kids", que narrava o estilo de vida de um grupo de adolescentes que passava os dias às voltas com drogas pesadas e sexo promíscuo. O filme - que lançou as carreiras de Rosario Dawson e Chloe Sevigny - chocou o público e despertou acaloradas discussões, mas falhava flagrantemente em ser bom cinema, talvez pela vocação de seu diretor, mais propenso ao escândalo do que a uma boa história. Reprovado no teste do tempo, "Kids" é, hoje em dia, no máximo o retrato cru de uma geração perdida. Em oposição a essa sua fragilidade narrativa, outro filme com temática semelhante - e lançado mais de uma década depois - consegue ser muito mais eficaz e impactante: "Alpha dog", escrito e dirigido por Nick Cassavetes, é contundente e tocante na mesma medida, proporcionando ao público tanto um filme policial angustiante quanto um drama familiar potente e dramaticamente sólido.

Baseado em um fato real - do qual Cassavetes foi obrigado a fazer pequenas alterações por motivos judiciais - "Alpha dog" é uma denúncia de grande impacto, sem nunca transformar-se, porém, em uma obra panfletária e vazia. Excepcional diretor de atores (herança de seu pai, o ator e diretor John Cassavetes), Nick arranca de seu elenco - tanto o veterano quanto o jovem - interpretações de grande intensidade, devido em parte ao roteiro realista e repleto de cenas que dão espaço a belos trabalhos de construção de personagens. Ben Foster, por exemplo, brilha como Jake Mazursky, jovem viciado em drogas explosivo e violento que acaba sendo o catalisador da tragédia ao dever dinheiro - e um tanto de respeito - ao traficante Johnny Truelove (Emile Hirsch, sensacional), filho de uma família de classe média desacostumado a ter seus caprichos negados. Furioso com a dívida e com as agressões de Mazursky, Truelove resolve, em um impulso inconsequente, sequestrar seu irmão caçula, Zach (Anton Yelchin, na medida exata de ingenuidade e docilidade), de apenas 15 anos. Enquanto a família do rapaz entra em desespero com seu desaparecimento, o traficante confia a seu melhor amigo, Frankie (Justin Timberlake), a posse do menino. Zach, um garotão virgem e em conflito com a mãe superprotetora (Sharon Stone), vê em Frankie e seu grupo - cercado de belas garotas e uma liberdade com que apenas sonha em sua casa - uma nova forma de vida e nem de longe percebe que, quanto mais o tempo passa, menores ficam suas chances de ser libertado.


Abrindo seu filme com vídeos caseiros de seus atores jovens ao som de "Over the rainbow" - e encerrando com a bela "Wild is the wind", na voz de David Bowie - Nick Cassavetes tem a sensibilidade ideal para contar uma história sufocante, que constrói sua tensão passo a passo, que permite à audiência entender os atos de seus protagonistas por mais equivocados que eles estejam. É certo que a simpatia da plateia fica com Zach, o inocente útil pego no meio de um furacão, mas o carisma de Justin Timberlake e Emile Hirsch consegue amenizar a falta de caráter de seus personagens - em especial de Frankie, criado por Timberlake com um misto de insegurança e compaixão que quase lhe transforma em mais uma vítima da violência que ele mesmo causa - voluntariamente ou não. E é fascinante a maneira como Cassavetes extrai de Sharon Stone seu melhor desempenho desde sua indicação ao Oscar por "Cassino", realizado onze anos antes: a entrevista de sua personagem no desfecho do filme é, provavelmente, uma das cenas mais emocionalmente brutais do cinema americano independente dos últimos anos.

"Alpha dog" é violento, é triste, é chocante. Conquista o público com personagens amorais e pouco simpáticos justamente por sua neutralidade ao falar de um estilo de vida irresponsável e cínico, capaz de destruir vidas sem grandes remorsos. E é o melhor trabalho de um cineasta que gosta de atores e de personagens de carne-e-osso, coisa rara na robotizada Hollywood das grandes bilheterias.

segunda-feira

PARIS, TE AMO

PARIS, TE AMO (Paris, je t'aime, 2006, Victoires International, 120min) Direção: Olivier Assayas, Frédéric Auburtin, Emmanuel Benbihy, Gurinder Chadha, Sylvain Chomet, Ethan Coen, Joel Coen, Isabel Coixet, Wes Craven, Alfonso Cuaron, Gerard Depardieu, Christopher Doyle, Richard LaGravenese, Vincenzo Natali, Alexander Payne, Bruno Podalydès, Walter Salles, Oliver Schmitz, Nobuhiro Suwa, Daniela Thomas, Tom Tykwer, Gus Van Sant. Roteiro: Emmanuel Benbihy, Bruno Polalydès, Paul Mayeda Berges, Gurinder Chada, Gus Van Sant, Joel & Ethan Coen, Walter Salles & Daniella Thomas, Christopher Doyle & Rain Li & Gabrielle Keng, Isabel Coixet, Nobuhiro Suwa, Sylvain Chomet, Alfonso Cuarón, Olivier Assayas, Oliver Schmitz, Richard LaGravenese, Vincenzo Natali, Wes Craven, Tom Tykwer, Gena Rowlands, Alexander Payne & Nadine Eid. Fotografia: Maxime Alexandre, Michel Amathieu, Pierre Aim, Bruno Delbonnel, Eric Gautier, Frank Griebe, Eric Guichard, Jean-Claude Larrieu, Denis Lenoir, Rain Li, Pascal Marti, Tetsuo Nagata, Matthieu-Poirot Delpech, David Quesemand, Pascal Rabaud, Michael Seresin, Gérard Sterin. Montagem: Luc Barnier, Mathilde Bonnefoy, Stan Collet, Simon Jacquet, Anne Klotz, Isabel Meier, Alex Rodriguez, Hisako Suwa. Música: Pierre Adenot, Michael Andrews, Reinhold Heil, Johnny Klimek, Tom Tykwer. Figurino: Olivier Bériot. Direção de arte/cenários: Bettina von den Steinen/Hélène Dubreuil, Sébastien Monteux-Halleur. Produção executiva: Chris Bolzli, Gilles Caussade, Rafi Chaudry, Sam Englebardt, Ara Katz, Maria Kopf, Frank Moss, Chad Troutwine. Produção: Emmanuel Benbihy, Claudie Ossard. Elenco: Gaspard Ulliel, Steve Buscemi, Catalina Sandino Moreno, Miranda Richardson, Sergio Castelitto, Leonor Watling, Javier Camara, Juliette Binoche, Willem Dafoe, Nick Nolte, Maggie Gyllenhaal, Fanny Ardant, Bob Hoskins, Elijah Wood, Emily Mortimer, Olga Kurylenko, Rufus Sewell, Natalie Portman, Gena Rowlands, Ben Gazzarra, Gerard Depardieu, Margo Martindale. Estreia: 18/5/06 (Festival de Cannes)

Que Paris é uma das cidades mais românticas e belas do mundo não há dúvida. Cenário natural de dezenas de filmes - sejam eles franceses, hollywoodianos ou de outros países com menor tradição na indústria do cinema - a cidade-luz teve a sua grande chance de transformar-se de pano de fundo em protagonista em "Paris, te amo", primeiro de uma série que continuou com Nova York e tem no Rio de Janeiro seu terceiro capítulo. Produção coletiva que apresenta uma equipe invejável de cineastas e atores das mais diversas nacionalidades, o filme, como sempre acontece com obras do tipo, é irregular, mas ainda assim tem a seu favor a inventividade, a imprevisibilidade e a delicadeza de todos os segmentos. É impossível não se apaixonar por ele.

Logicamente nem todas as histórias são marcantes, e algumas até mesmo soam bobas, mas é inegável que a maioria esmagadora dos diretores estava em dias inspirados. Diante do espectador desfilam tramas sobre amores perdidos, amores encontrados, vampiros, mímicos, solitários, escritores mortos e todo tipo de gente em busca da felicidade. Fotografado com carinho e um bom-gosto que deixa no espectador uma impressão onírica das mais fascinantes, "Paris, te amo" é, além de tudo, um conjunto de bons roteiros, bons diretores e bons atores, em um conjunto que deixa tudo ainda mais irresistível - em especial em alguns segmentos, que são tão inteligentes e interessantes que poderiam tranquilamente ultrapassar as limitações de um curta.


O primeiro segmento digno de destaque é "Quais de sene", dirigido por Gurinder Chadha, que acompanha o início da relação entre o estudante François (Cyril Descours) e a muçulmana Zarka (Leila Bekhti), em uma história que surpreende por não se deixar cair na armadilha fácil do conflito religioso. "Les Marais", de Gus Van Sant, mostra a tentativa de um jovem (Gaspard Ulliel, de "Eterno amor") em convencer um outro rapaz (Elias McConnell) a lhe telefonar para marcar um encontro. "Tuileuries", dos irmãos Coen - um dos episódios mais visuais e criativos - mostra as desventuras de um turista americano (o ótimo Steve Buscemi) quando encontra, à espera do metrô, um casal francês disfuncional. Os brasileiros Walter Salles e Daniella Thomas acompanham a jovem Ana (Catalina Sandino Moreno) em sua árdua rotina de trabalho como babá no singelo "Loin du 16e". Isabel Coixet se destaca magistralmente com a belíssima história de um homem (Sergio Castelitto) que se apaixona novamente pela esposa (Miranda Richardson) quando descobre que ela está morrendo de câncer. O extraordinário "Place des Victoires", de Nobuhiro Suwa, mostra o desespero de uma mãe (Juliette Binoche) que acaba de perder o filho.

Ainda chamam a atenção os segmento "Tour Eiffel", de Sylvain Chomet, que segue um mímico em seu dia-a-dia com extrema criatividade, "Quartier de La Madeleine", de Vincenzo Natali, que mostra um jovem, vivido por Elijah Wood, se apaixonando pela vampira Olga Kurylenko sob um visual deslumbrante e a história de amor entre um rapaz cego (Melchior Beslon) e uma atriz de cinema (Natalie Portman) contada pelo alemão Tom Tykwer em "Faubourg Saint-Denis" com uma edição ágil e empolgante - sua marca registrada desde o sucesso de "Corra Lola, corra". O episódio final, "14e arrondissement", de Alexander Payne, também merece destaque por, no mínimo, permitir que a sensacional atriz Margo Martindale, sempre coadjuvante, assuma um papel de protagonista e comprove seu enorme talento - mesmo quando está em silêncio.

Mesmo que algumas histórias não sejam tão fascinantes quanto as outras - situação corriqueira em filmes episódicos - "Paris, te amo" tem uma regularidade impressionante, mantendo a plateia deslumbrada desde seus primeiros minutos até seu final quase apoteótico, quando todas as tramas voltam à tela para uma despedida emocionante. É, sem dúvida, uma bela homenagem à grande cidade dos amantes.

sexta-feira

ABC DO AMOR

ABC DO AMOR (Little Manhattan, 2005, New Regency Pictures, 84min) Direção: Mark Levin. Roteiro: Jennifer Flackett. Fotografia: Tim Orr. Montagem: Alan Edward Bell. Música: Chad Fischer. Figurino: Kasia Walicka-Maimone. Direção de arte/cenários: Stuart Wurtzel/Diane Lederman. Produção executiva: Vivian Cannon, Kara Francis. Produção: Gavin Polone. Elenco: Josh Hutcherson, Charlie Ray, Bradley Whitford, Cynthia Nixon. Estreia: 26/9/05 (Festival de Cinema do Rio de Janeiro)

A trama de "ABC do amor" segue o padrão do gênero: rapaz se apaixona perdidamente por uma colega de karatê, tenta conquistá-la, vive momentos inesquecíveis a seu lado, fica inseguro quando um outro homem surge no caminho de seu relacionamento e sofre com todas as agonias que o amor acarreta. O que diferencia o filme de Mark Levin dos demais exemplares das comédias românticas, então? O fato simples de que Gabe, o protagonista, tem apenas 10 anos de idade e está experimentando, com sua paixão avassaladora pela pequena Rosemary Telesco, o primeiro amor de sua vida. Com roteiro escrito por sua mulher, Jennifer Flackett, Levin criou uma pequena obra-prima de delicadeza, sensibilidade e bom-humor conduzido pela interpretação encantadora de Josh Hutcherson - que posteriormente faria sucesso como um dos protagonistas da série de filmes "Jogos vorazes".

Hutcherson interpreta Gabe - o filho único de um casal de pais separados que ainda moram no mesmo apartamento em Nova York - com carisma de gente grande. É graças a seu encanto que o público embarca sem reservas na sua dramática/engraçada/lírica história de amor com Rosemary (Charlie Ray), uma colega de jardim-de-infância que ele reencontra depois de um tempo e por quem se apaixona perdidamente. Através de Gabe e seus dramas e paranoias- adequadamente exagerados por serem vistos pelos olhos de uma criança - a audiência revive um momento no tempo em que amar é a única coisa que existe. O sorriso de Gabe ao sentir os braços da amada ao redor de seu corpo, suas lágrimas sentidas quando prevê a separação (que pode ou não ocorrer), a angústia do ciúme e o sentimento de impotência diante de situações imprevistas são postas sob uma lente de aumento, retratando uma espécie de amor que, querendo ou não, a plateia anseia reviver na maturidade.


Vendido como um filme infanto-juvenil, "ABC do amor" é, na verdade, uma obra que pode - e deve - ser vista como um romance qualquer, com a diferença de que é muito superior à boa parte das comédias que são lançadas a granel pelos estúdios. Mesmo que não ultrapasse um inocente primeiro beijo e deixe de lado as elocubrações erótico/desesperadas da maioria de seus congêneres, o filme de Levin ganha pontos ao proporcionar ao público uma espécie de nostalgia sentimental normalmente tida como sentimentaloide pelos críticos de plantão. A docilidade do amor de Gabe por Rosemary - refletida em sua liberdade pelas ruas que frequenta com propriedade a bordo de seu patinete - não é tratada com condescendência irresponsável, e sim com o carinho que somente sobreviventes de um primeiro amor conseguem retratar. E é praticamente impossível não sorrir diante das desventuras amorosas de um personagem como Gabe.

Apresentando também um senso de humor bastante engraçado - e apropriadamente puro, como a relação entre seus protagonistas - "ABC do amor" é um filme sem contra-indicações, exceto, é claro, para aqueles cínicos e fãs de piadas grosseiras e histórias violentas e desprovidas de poesia. O filme de Mark Levin é poesia juvenil, cheia de bons sentimentos e um elenco impecável que inclui Cynthia Nixon - a Miranda da série "Sex and the city" - e Bradley Whitford, um dos atores mais subaproveitados de Hollywood. É um exemplo de sessão da tarde das mais competentes e fascinantes.

quinta-feira

AUSTIN POWERS EM "O HOMEM DO MEMBRO DE OURO"

AUSTIN POWERS EM "O HOMEM DO MEMBRO DE OURO" (Austin Powers in Goldmember, 2002, New Line Cinema, 94min) Direção: Jay Roach. Roteiro: Mike Meyers, Michael McCullers. Fotografia: Peter Deming. Montagem: Greg Hayden, Jon Poll. Música: George S. Clinton. Figurino: Deena Appel. Direção de arte/cenários: Rusty Smith/Sara Andrews-Ingrassia. Produção executiva: Richard Brener, Toby Emmerich. Produção: John Lyons, Eric McLeod, Demi Moore, Mike Meyers, Jennifer Todd, Suzanne Todd. Elenco: Mike Meyers, Michael Caine, Beyoncé Knowles, Seth Green, Michael York, Robert Wagner, Fred Savage. Estreia: 22/7/02

Em 1997, uma despretensiosa comédia feita com meros 17 milhões de dólares de orçamento e a verve besteirol do ator Mike Meyers "Austin Powers" pegou Hollywood de surpresa e rendeu quase 60 milhões somente no mercado doméstico. Dois anos depois, entusiasmados com a receptividade do agente secreto britânico metido a conquistador que, congelado nos anos 60, chega à década de 90 e tenta adequar-se a ela enquanto luta com seu nêmesis, o temível Dr. Evil, os executivos da New Line Cinema abriram os cofres. Com um custo de 33 milhões, "Austin Powers e o espião 'bond' cama" se deu ainda melhor nas bilheterias, com uma renda interna de mais de 200 milhões. Não foi nenhuma surpresa, portanto, que um terceiro capítulo chegasse às telas. "Austin Powers em 'O Homem do Membro de Ouro'" - novamente dirigido pelo mesmo Jay Roach que comandou a trilogia inteira - foi o mais caro da série (custou mais que a renda do primeiro filme), mas novamente ultrapassou a barreira dos 200 milhões e finalizou as aventuras de Powers com chave de ouro - a ponto de até hoje o público ansiar por um novo projeto.

Voltando a debochar dos clichês que infestam os filmes de espionagem, "O homem do membro de ouro" - cujo título já é uma explícita brincadeira com os filmes de James Bond - tem uma história banal, que serve apenas para uma sucessão de piadas dos mais variados níveis e estilos. Tudo começa quando o pai de Austin, o também espião Nigel Powers (em um trabalho caprichado de ironia de Michael Caine) é sequestrado pelo maior inimigo do herói, o maquiavélico Dr. Evil (também interpretado por Meyers), que planeja mais uma vez dominar o mundo, dessa vez contando com a ajuda do misterioso Goldmember (mais uma vez Meyers). Para resgatar seu pai - com quem tem uma relação tumultuada desde a infância - Powers precisa voltar ao ano de 1975, onde reencontra sua antiga paixão Foxxy Cleopatra (a cantora Beyoncé Knowles, estreando como atriz), uma agente do FBI que trabalha disfarçada de cantora disco.


A trama é apenas uma desculpa para que Meyers dispare sua metralhadora giratória, com um humor que tanto pode agradar quanto despertar críticas. Ao mesmo tempo em que faz piadas visuais engraçadíssimas - que ecoam sequências dos outros filmes - a direção de Roach peca em algumas gags que apelam para a escatologia pura e simples. Essa tática é inteligente em sua tentativa de conquistar os variados tipos de audiência, mas acaba prejudicando o ritmo do filme com um todo. A cada momento de humor sarcástico - que tira partido das diferenças culturais entre americanos/ingleses e temporais - o filme cresce, demonstrando o talento aparentemente infinito de Meyers em fazer rir das situações mais variadas, contando com a ajuda da sensacional equipe de maquiadores, que o transformam em nada menos que quatro personagens - além dos já citados há ainda Fat Bastard, que já vem do segundo capítulo.

E como não poderia deixar de ser, "O homem do membro de ouro" conta também com personagens já comprovadamente bem-sucedidos nos filmes anteriores da série. É o caso de Scott Evil, filho do vilão, interpretado por Seth Green, e o imbatível Mini-mim, a versão em tamanho compacto de Dr. Evil, responsável por duas das mais engraçadas cenas do filme. Junto a eles, nomes consagrados como Michael Caine explorando seu timing cômico e Michael York se divertem tanto quanto o público, que já começa o entretenimento na sequência de abertura, que conta com participações muito especiais de Tom Cruise, Kevin Spacey, Gwyneth Paltrow, Steven Spielberg e Britney Spears - o que demonstra o prestígio de Meyers dentro da indústria. Pro bem ou pro mal, o filme é a sua cara. Cabe à audiência decidir se é de seu gosto ou não.

quarta-feira

ENCONTRO DE AMOR

ENCONTRO DE AMOR (Maid in Manhattan, 2002, Revolution Studios, 105min ) Direção: Wayne Wang. Roteiro: Kevin Wade, estória de Edmond Dantès (pseudônimo de John Hughes). Fotografia: Karl Walter Lindelaub. Montagem: Craig McKay. Música: Alan Silvestri. Figurino: Albert Wolsky.  Direção de arte/cenários: Jane Musky/Susan Tyson. Produção executiva: Benny Medina, Charles Newirth. Produção: Elaine Goldsmith-Thomas, Paul Schiff, Deborah Schindler. Elenco: Jennifer Lopez, Ralph Fiennes, Stanley Tucci, Bob Hoskins, Natasha Richardson, Tyler Posey, Frances Conroy. Estreia: 13/12/02

Famoso por seus clássicos adolescentes dos anos 80, como "A garota de rosa-shocking", "Gatinhas e gatões" e "Clube dos cinco", o cineasta John Hughes escreveu, no final dos anos 90, um roteiro inspirado na história real do filho do governador Nelson Rockefeller, que se casou com a camareira de um de seus vários hoteis em 1959. Adaptado para se passar na Chigado dos anos 20, o filme seria estrelado por Hilary Swank, mas conforme o tempo foi passando, as coisas iam mudando. Depois que Hughes resolveu apenas produzir, nomes como Sandra Bullock e Julia Roberts foram cotadas para o papel principal e o cineasta Wayne Wang - nascido em Hong Kong e diretor de pequenos grandes filmes como "Cortina de fumaça" e "Clube da felicidade e da sorte" - assumiu o comando do projeto. Quando o filme finalmente viu a luz dos refletores, no final de 2002, com a cantora Jennifer Lopez na liderança do elenco, pouco restava do script de Hughes, que pediu para ter seu nome removido dos créditos. Dessa vez passado na Nova York de 2001, "Encontro de amor" conquistou às plateias românticas, os fãs de J-Lo e ao estúdio, que não se decepcionou com a renda doméstica que beirou os 100 milhões de dólares de arrecadação.

No entanto, o sucesso de bilheteria tem mais ver com o poder de Lopez em atingir seu público do que com as qualidades do filme. Mesmo que seja leve, visualmente agradável e bem interpretado - especialmente pelo sempre confiável Ralph Fiennes - "Encontro de amor" é apenas mais um drama romântico, sem nada que o diferencie de dezenas de outras produções do gênero. Frustra quem procura mais do que isso, mas agrada em cheio ao público (especialmente o feminino) com um trama ingênua e fantasiosa que mistura tudo aquilo que pode: identidades trocadas, crianças adoráveis, sofisticação e uma dupla central atraente. Com isso em mãos, a chance de erro era mínima, e não seria Wang, um cineasta sensível e atento às idiossincrasias humanas, que poria tudo a perder.


Lopez, que não é uma grande atriz, mas tem presença de cena, é linda e carismática, interpreta Marisa Ventura , uma das dezenas de camareiras de um imponente hotel de Nova York, que frequentemente passa em branco por seus sofisticados clientes - que muitas vezes nem lembram seu nome ou rosto. Criando praticamente sozinha seu filho pequeno, que tem uma curiosa admiração por grandes oradores políticos, Marisa sonha em tornar-se subgerente do hotel, como forma de levar uma vida menos sacrificante. Sua grande chance de atingir seu objetivo acontece, porém, na mesma época em que, por uma ironia do destino, ela passa a ser confundida com uma hóspede milionária justamente por Christopher Marshall (Ralph Fiennes), candidato ao Senado americano. Sem desconfiar de suas origens humildes, Marshall se sente irremediavelmente atraído por ela, que corresponde o sentimento mesmo sabendo que o romance tem data marcada para acabar.

Pontuado por uma trilha sonora que inclui duas belas canções de Norah Jones, "Encontro de amor" oferece ao espectador exatamente o que promete. Não muda a história do cinema e nem ao menos de seu gênero. Não irá para a lista dos favoritos de ninguém que leve o cinema a sério, e tampouco entrará na lista dos melhores do estilo. Mas é uma sessão da tarde competente, que utiliza de todos os clichês das comédias românticas a seu favor.

terça-feira

O QUARTO DO FILHO

O QUARTO DO FILHO (La stanza del figlio, 2001, Rai Cinemafiction, 99min) Direção: Nanni Moretti. Roteiro: Nanni Moretti, Heidrun Schleef, Linda Ferri. Fotografia: Giuseppe Lanci. Montagem: Esmeralda Calabria. Música: Nicola Piovani. Figurino: Maria Rita Barbera. Direção de arte/cenários: Giancarlo Basili. Produção: Angelo Barbagallo, Federico Fabrizio, Vincenzo Galluzzo, Lorenzo Luccarini, Nanni Moretti. Elenco: Nanni Moretti, Laura Morante, Jasmine Trinca, Giuseppe Sanfelice, Stefano Accorsi. Estreia: 09/3/01

Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes

Quando um filme americano trata de perdas familiares, o público já sabe o que esperar: cenas catárticas, lágrimas em profusão e atores lutando por destaque - e quiçá uma lembrança dos membros da Academia. Quando a produção vem da Europa, porém, a coisa é bastante diferente, ainda que o tema seja o mesmo. Um exemplo claro dessa afirmação é  "O quarto do filho", que saiu de Cannes em 2001 com a Palma de Ouro de Melhor Filme mesmo diferindo radicalmente das obras normalmente laureadas no festival - em outras palavras, é um drama simples e direto, sem firulas estilísticas ou arroubos artificiais de criatividade forçada. Ao investigar as consequências da morte de um adolescente em sua família, o diretor/roteirista/produtor/ator Nanni Moretti criou um singelo estudo sobre a perda que foge do dramalhão simplista e acena com um otimismo comovente.

O psicanalista Giovanni Sermonti (vivido pelo próprio Moretti) leva uma vida feliz e harmoniosa com a mulher Paola (Laura Morante) e o casal de filhos adolescentes, Irene (Jasmine Trinca) e Andrea (Giuseppe Sanfelice) até que, em um acidente de mergulho, o rapaz acaba morrendo - enquanto ele está atendendo um paciente à domicílio. A tragédia acaba empurrando-o em direção a remorsos e questionamentos, prejudicando sua carreira e seu casamento até então inabalável. Tentando lidar com a terrível perda, a família encontra um sopro de esperança quando descobre uma namorada desconhecida do rapaz.


Evitando ao máximo cenas lacrimosas, o filme de Moretti trata com elegância e discrição um tema difícil e compreensivelmente depressivo. Fugindo dos exageros que se poderia esperar de um filme italiano, ele prefere investir em cenas de impacto visual sutil, refletindo o vazio da família Sermonti através de olhares e da bela música de Nicola Piovani. Equilibrando com maestria o drama do protagonista com as consultas dos pacientes de Giovanni - incluindo um viciado em sexo interpretado por Stefano Accorsi em vias de tornar-se um dos atores mais populares do cinema italiano do início do século XXI - o roteiro deixa o espectador respirar diante de tanta dor sem nunca fugir de sua premissa central, um mérito inquestionável que fortalece o drama sem pesar a mão.

E é justamente essa a maior qualidade de "O quarto do filho": nunca pesar a mão. Apesar do assunto não ser nada agradável, Nanni Moretti consegue ser o mais leve possível, optando em mostrar como um lar devastado pela tristeza pode levantar-se e seguir adiante. Com um elenco homogêneo e uma direção firme, ele fez jus a seu prêmio em Cannes com uma obra madura e exemplar que contrapõe a felicidade talvez ignorada do cotidiano ao vazio avassalador de uma perda.

segunda-feira

UMA LIÇÃO DE AMOR

UMA LIÇÃO DE AMOR (I am Sam, 2001, New Line Cinema, 132min) Direção: Jessie Nelson. Roteiro: Jessie Nelson, Kristine Johnson. Fotografia: Elliot Davis. Montagem: Richard Chew. Música: John Powell. Figurino: Susie DeSanto. Direção de arte/cenários: Aaron Osborne/Jennifer M. Gentile, Garrett Lewis.  Produção executiva: Michael De Luca, Claire Rudnick Polstein, David Rubin. Produção: Marshall Herskovitz, Jessie Nelson, Richard Solomon, Edward Zwick. Elenco: Sean Penn, Michelle Pfeiffer Dakota Fanning, Dianne Wiest, Laura Dern, Richard Schiff, Doug Hutchinson. Estreia: 03/12/01

Indicado ao Oscar de Melhor Ator (Sean Penn)

Em "Trovão tropical", de 2008, o ator interpretado por Ben Stiller (também diretor do filme) sofria com o fracasso de sua atuação como um jovem com problemas mentais - que ele julgava ser o caminho mais fácil para um Oscar. É difícil não pensar na comédia de Stiller quando se assiste à "Uma lição de amor", drama lacrimoso pelo qual Sean Penn - sem a menor dúvida um dos maiores atores de sua geração - foi indicado a uma estatueta da Academia. Carregando nas tintas de sua interpretação, Penn chega perto da caricatura como Sam Dawson, um homem com a idade mental de um criança de sete anos que vai aos tribunais para garantir a guarda da pequena Lucy (Dakota Fanning), de quem cuida desde seu nascimento - e que, segundo a justiça, precisa de uma família capaz de mantê-la em segurança e estabilidade financeira.

Dirigido sem o menor traço de sutileza, "Uma lição de amor" força a lágrima do espectador sem dó nem piedade, ainda que justamente o exagero de sentimentalismo possa surtir efeito contrário ao público menos propenso a manipulações emocionais. Sam, o personagem encarnado por Penn, pode até ser amoroso e dedicado à pequena Lucy (estreia da sensacional Dakota Fanning), mas, a despeito de seus bons sentimentos, é incapaz de proporcionar a ela mais do que isso. A maneira com que o roteiro conduz a situação - Sam é um homem sem defeito algum, exceto sua deficiência mental, enquanto todos os outros são poços de insensibilidade - é maniqueísta ao extremo, chegando ao cúmulo de fazer com que sua advogada, a bem-sucedida Rita Harrison (Michelle Pfeiffer, sempre linda e carismática), repense sua própria vida e sua relação com o filho pequeno. Clichês às vezes fazem bem a um filme. Uma coleção deles, portanto, enfraquece o resultado final.


Além do fato de não explicar de forma satisfatória como Sam - que é incapaz de coisas básicas do dia-a-dia - conseguiu tornar-se pai, o roteiro de "Uma lição de amor" apela constantemente para cenas lacrimosas, com golpes baixos em busca da reação desejada. Se Dakota Fanning rouba a cena com sua madura Lucy - responsável pelos raros bons momentos do filme - e Michelle Pfeiffer tem pouco a fazer com sua advogada fria transformada em um ser humano melhor pelo poder do amor, o elenco coadjuvante tenta dar dignidade a diálogos de novela das nove. Dianne Wiest, por exemplo, está soberba como sempre como a vizinha de Sam, que tem na cena de seu depoimento no tribunal uma chance de mostrar porque é uma das atrizes preferidas de Woody Allen. E Laura Dern faz o que pode para sobreviver à sua personagem, a mãe adotiva de Lucy que entra em conflito com Sam e sua advogada.

Mas não resta dúvidas de que, à parte Dakota e seu talento inverso a seu tamanho, o que existe de melhor em "Uma lição de amor" é sua trilha sonora. Composta por canções dos Beatles - ídolos do protagonista, que tem a capacidade de divagar sobre eles por horas a fio - interpretadas por artistas contemporâneos com Sheryl Crow, Rufus Weinright e Eddie Vedder, ela dá um interesse extra ao projeto, deixando as mais de duas horas de projeção menos pesadas. No entanto, o que fica é a conclusão definitiva de que Penn é muito melhor do que o filme, apesar do equívoco de sua atuação.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...