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SOB O DOMÍNIO DO MEDO

SOB O DOMÍNIO DO MEDO (Straw dogs, 1971, ABC Pictures, 113min) Direção: Sam Peckinpah. Roteiro: David Zelag Goodman, Sam Peckinpah, romance "The siege of Trencher's farm", de Gordon M. Williams. Fotografia: John Coquillon. Montagem: Paul Davies, Tony Lawson, Roger Spotiswoode. Música: Jerry Fielding. Direção de arte/cenários: Ray Simm/Ken Bridgeman. Produção: Daniel Melnick. Elenco: Dustin Hoffman, Susan George, Peter Vaughan, T.P. McKenna, Del Henney, Jim Norton, Donald Webster, Len Jones, Peter Arne. Estreia: 93/11/71

Indicado ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original

Não é à toa que Sam Peckinpah recebeu o apelido de Mestre da Violência. Se em "Meu ódio será tua herança" (69) ela ainda aparecia de certa forma estilizada e quase poeticamente, em "Sob o domínio do medo", seu filme seguinte, nada disfarça a forma cruel e inexorável com que ela invade a vida e a consciência de um homem pacato e até então avesso a qualquer tipo de manifestações crueis. Um dos filmes mais polêmicos dos anos 70 - que chegou a ver seu lançamento em vídeo e DVD banido na Inglaterra entre os anos de 1984 e 2002 - também coloca um dos atores-símbolo da época, Dustin Hoffman, em um papel atípico em sua carreira. Avesso a qualquer tipo de violência, Hoffman sempre assumiu que aceitou o papel de David Sumner apenas por dinheiro - ficando com um papel que foi considerado para Donald Sutherland, Jack Nicholson e até Sidney Poitier e que até hoje é lembrado como um dos mais importantes de seu currículo. Sua presença física diminuta e quase desconfortável diante dos caipiras gigantescos que transformam sua vida não poderia ter sido melhor aproveitada por Peckinpah, que filma sua metamorfose de cidadão comum em um vingador ensandecido e truculento com a dose certa de voyeurismo e sadismo. Esse ângulo da questão - que convida o espectador a testemunhar e torcer pela violência - talvez seja o aspecto mais controverso do filme. E é também o mais interessante.

David Sumner (Hoffman em seu melhor estilo "gente como a gente") é um matemático americano que acaba de chegar à cidadezinha da Inglaterra litorânea que é a terra de sua jovem e desejável esposa, Amy (Susan George). O que ele deseja é paz de espírito e tranquilidade para terminar um livro, mas logo percebe que as coisas não serão exatamente como ele espera: logo de cara ele conhece um ex-namorado de Amy, Charlie Venner (Del Henney), que demonstra claramente ter esperanças de reconquistar a amada. Sempre acompanhado de dois primos mal-encarados, Charlie acaba sendo contratado por David para fazer os reparos necessários na fazenda onde o casal está se instalando. Aos poucos, fica evidente que a relação entre David e Amy está passando por uma fase difícil, o que facilita a aproximação de Charlie - que passa a perseguir o matemático e, em uma ocasião em que o afasta de casa, estupra Amy, junto com um colega. Amy esconde o fato do marido, mas não consegue esquecer a violência - que ela acredita ter causado, uma vez que encorajava a aproximação do ex-namorado.


Tudo se transforma em uma descida ao inferno logo em seguida, porém, justamente na noite em que a igreja local oferece uma festa aos moradores. O deficiente mental da cidade, Henry Niles (David Warner) - praticamente proscrito por acusações de pedofilia - acidentalmente mata uma jovem adolescente e, em sua fuga, é atropelado por Donald, que, sem saber do ocorrido, o leva para casa. Enfurecido com a tragédia, Charlie e um grupo de homens armados fica sabendo da localização do ex-presidiário e cerca a propriedade de David, forçando-o a entregá-lo ao que fica claro tratar-se de um provável linchamento. Ciente das consequências de tal ato, o matemático recusa-se a ceder e precisa, então, defender sua casa, sua vida e sua mulher de uma escalada de violência cada vez maior à sua volta. Nesse meio-tempo, ele precisa, também, contar com a ajuda de Amy, que não tem tanta certeza que manter Niles a salvo será bom para eles.

O ato final de "Sob o domínio do medo", quando Peckinpah finalmente mostra suas armas, é de arrepiar. Se até então o cineasta apenas insinuava a crueldade e a beligerância de seus personagens - através de atos covardes como a morte de um gato e um estupro que, a princípio, parecia sexo consensual - em seus trinta minutos finais ele solta as amarras e entrega à audiência um suspense de primeira linha, tanto em termos visuais quanto psicológicos. É especialmente hipnotizante a sequência em que Amy, traumatizada com a violência sofrida, não consegue separá-la da festa religiosa a que está presente, quase como se Peckinpah estivesse preparando o público para o festival de sangue que virá a seguir. A transformação de David Sumner em um bárbaro violento e vingativo é mostrada com coerência e não é difícil prever que boa parte dos espectadores compartilha de sua mudança e de seu desejo de vingança. Quanto mais violência vem a seu encontro, mais capaz de atos quase desumanos ele é, em um processo de desumanização - ou volta à barbárie - que é, ao mesmo tempo, chocante e fascinante. Não é de se estranhar, portanto, que no final do filme ele mesmo assuma que não sabe mais o caminho de volta para casa - ou para o seu antigo "eu", pacífico e contemporizador.

Visto hoje, uma época em que qualquer filmeco de terror apresenta esquartejamentos sem o menor pudor para plateias que os assistem enquanto comem pipoca, "Sob o domínio do medo" pode parecer quase pueril. Mas ainda é, para os fãs do verdadeiro cinema, uma aula de narrativa de suspense e violência - tanto que virou refilmagem nas mãos de Rod Lurie ("A conspiração"), estrelada por James Marsden. A iniciativa de apresentar a história às novas gerações é louvável. O resultado ainda deixa muito a desejar em relação ao original.

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