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O HOMEM SEM FACE

O HOMEM SEM FACE (The man without a face, 1993, Icon Entertainment, 115min) Direção: Mel Gibson. Roteiro: Malcolm MacRury, romance de Isabelle Holland. Fotografia: Donald M. McAlpine. Montagem: Tony Gibbs. Música: James Horner. Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Barbara Dunphy/Donald Emblad. Produção executiva: Stephen McEveety. Produção: Bruce Davey. Elenco: Mel Gibson, Nick Stahl, Margareth Witton, Fay Masterson, Gaby Hoffman, Richard Masur, Geoffrey Lewis. Estreia: 25/8/93

Levando-se em consideração as polêmicas declarações homofóbicas que causaram extremo repúdio junto à comunidade gay no início da década de 90, não é de estranhar que, em sua estreia na direção, Mel Gibson tenha optado por atenuar - leia-se eliminar - todo o conteúdo homoerótico do romance de Isabelle Holland no qual é baseado o roteiro de Malcolm MacRury. Segundo suas palavras, a decisão veio da tentativa de transformar a história central de um menino em busca de uma imagem paterna em algo mais positivo, sem o peso (para ele desnecessário) de um subtema como pedofilia. Tal alteração na trama central pode soar sacrilégio para os puristas, e as verdadeiras razões por trás dela provavelmente tem mais a ver com preconceito do que com questões de otimismo, mas o fato é que, independente de tudo isso, "O homem sem face", primeiro filme de Gibson por trás das câmeras, é surpreendentemente bom e, melhor ainda, dotado de uma sensibilidade inesperada para quem fez fama interpretando máquinas mortíferas e Mad Max.

De fato, é inesperado perceber que Gibson, pouco afeito a amabilidades e gentilezas na vida real - que o digam os inúmeros jornalistas que tem histórias escabrosas sobre a experiência de entrevistá-lo - pode ter um lado tão lúdico quanto o mostrado em vários momentos de seu filme de estreia. Deixando de lado a truculência que vinha acompanhando sua carreira desde os tempos de promissor galã australiano, o ator tornado cineasta não apenas conta sua história sem tropeços como consegue um feito raro até mesmo para alguns colegas mais experientes: emociona sem exagerar no melodrama e arranca uma interpretação exemplar de seu protagonista mirim, o ótimo Nick Stahl - que, depois de adulto, faria parte do elenco de filmes como "Entre quatro paredes" (01) e "O exterminador do futuro 3: a rebelião das máquinas" (03). Na pele do pequeno Charles Norstadt, o jovem ator demonstra uma segurança ímpar, sem, no entanto, causar a incômoda sensação de que está se esforçando para ser o novo menino prodígio de Hollywood. Esse frescor - o mesmo que Jodie Foster conseguiu de Adam Hann-Byrd em seu "Mentes que brilham" (91) - é a maior qualidade do filme de Gibson e o que faz com que qualquer pecadilho em sua realização seja perdoado.


Charles Norstadt, ou "Chuck", é o centro de "O homem sem face". Introvertido e dado a momentos de apatia, o menino sonha em passar no teste que lhe dará a oportunidade de estudar na mesma escola militar da qual fez parte seu pai - a quem ele pouco conheceu e de quem pouco sabe, exceto algumas pequenas lembranças e informações passadas por sua mãe. Vivendo em uma casa repleta de mulheres - sua irmã mais velha está na fase de sair com os rapazes e sua irmã caçula é uma mini-feminista com quem ele adora brigar - Chuck pouco acesso tem ao universo masculino e sente-se sufocado por uma rotina desconfortável e triste. Disposto a passar o verão inteiro estudando para provar à sua mãe que é capaz de ser aceito na escola militar, ele passa a ter aulas com Justin McLeod (Mel Gibson), um professor que deixou de exercer a profissão depois de um acidente que tirou a vida de um aluno e lhe desfigurou. Vivendo isolado em uma propriedade distante da cidade litorânea onde mora Chuck, McLeod também é vítima da gozação dos adolescentes locais e do preconceito dos mais velhos, que sabem das circunstâncias do desastre que causou seu afastamento da população. Escondido de todos, Chuck começa a frequentar a casa de McLeod e surge entre eles uma profunda amizade, calcada no respeito e na confiança - até que o passado do professor volta a atormentar sua existência.

O roteiro de Malcolm MacRury não ignora a questão da pedofilia constante no livro de Isabelle Holland, como pode-se perceber pela sinopse. Porém, no romance a relação entre McLeod e Chuck assume contornos menos ingênuos do que no filme, que coloca o professor na posição de vítima totalmente inocente de uma sociedade preconceituosa. É inegável que na tela - e da maneira como tudo é posto diante dos olhos do público - essa opção funciona e é a mais acertada. Apostar em um relacionamento mais familiar entre os dois protagonistas facilita a identificação do público médio que fugiria de uma abordagem (por mais delicada que fosse) de um tema tão difícil como a pedofilia. Se isso é certo do ponto de vista ético - alterar tão radicalmente uma obra de arte a ponto de tirar-lhe o cerne - é uma discussão interminável, mas Gibson conseguiu, com seu primeiro filme (e o início de uma carreira que lhe daria um Oscar da categoria já em seu trabalho seguinte, "Coração valente", de 95) realizar um trabalho digno e consistente, amparado por uma bela fotografia, uma trilha sonora emotiva e nunca invasiva e uma direção de atores de extrema competência. Quem diria!

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