domingo

O LENHADOR

O LENHADOR (The woodsman, 2004, Lee Daniels Productions/Dash Films, 87min) Direção: Nicole Kassel. Roteiro: Nicole Kassel, Steven Fechter, peça teatral de Steven Fechter. Fotografia: Xavier Pérez Grobet. Montagem: Lisa Fruchtman, Brian A. Kates. Música: Nathan Larson. Figurino: Frank Fleming. Direção de arte/cenários: Stephen Beatrice/Christine Wick. Produção executiva: Kevin Bacon, Damon Dash, Brook, Dawn Lenfest. Produção: Lee Daniels. Elenco: Kevin Bacon, Kyra Sedgwick, Benjamin Bratt, Michael Shannon, Mos Def, Eve. Estreia: 19/01/04 (Festival de Sundance)

Primeiro há que se louvar a coragem de um filme de ter como protagonista um pedófilo sem retratá-lo como um vilão desalmado e cruel e sim como uma pessoa dotada de sentimentos ao mesmo tempo em que luta contra sua natureza monstruosa. Depois, deve-se aplaudir a delicadeza que Kevin Bacon, um ator ainda não devidamente valorizado pela indústria hollywoodiana, empresta a esse mesmo protagonista, jamais carregando nas tintas melodramáticas de um personagem cercado de armadilhas e convites ao overacting. Só então pode-se degustar "O lenhador" como o filme que ele realmente é: um drama denso e intrigante que, ao invés de mergulhar o espectador em um espetáculo de violência e tensão, o convida a testemunhar silenciosamente o pesadelo de um homem assombrado por seus fantasmas pessoais enquanto tenta retornar ao convívio da sociedade - e livrá-la de outra ameaça similar a ele.

Baseado em uma peça teatral de Steven Fechter - também um dos autores da adaptação para as telas - "O lenhador" tem entre seus produtores o futuro cineasta Lee Daniels, o que fica claro em sua abordagem seca e direta do tema, sem espaços para pieguice ou lágrimas desnecessárias. Assim como Daniels faria em seu maior sucesso, "Preciosa" (09), a diretora Nicole Kassel prefere uma abordagem menos sensacionalista de sua trama, buscando não a compaixão da plateia, e sim sua percepção em relação à vasta gama de sentimentos e circunstâncias que cercam o protagonista, Walter, que, depois de 12 anos de prisão, tem sua liberdade retomada junto com a carga de ter sido condenado por abuso sexual infantil. Vigiado de perto pelo rígido Sargento Lucas (Mos Def), Walter se vê morando diante de uma escola de ensino fundamental - o que testa diariamente sua decisão em manter-se na linha - e arruma emprego em uma madeireira, onde seu silêncio acaba por despertar a curiosidade dos colegas, em especial da pouco simpática Mary-Kay (Eve), que não demora em descobrir seu segredo e espalhar pelo local. Antes que isso aconteça, no entanto, ele inicia um hesitante romance com uma colega, Vicki (Kyra Sedgwick, esposa de Bacon na vida real) e passa desconfiar das intenções de um misterioso motorista que diariamente estaciona seu carro diante da escola em frente a seu apartamento.


Utilizando-se da história da Chapeuzinho Vermelho como metáfora para uma de suas subtramas - que envolve uma menina com quem Walter inicia uma temerária relação - e empurrando seu roteiro para longe do previsível, o filme de Kassel explora, em pouco menos de uma hora e meia, uma série de questionamentos relevantes e instigantes. Ao inserir Walter - com toda a sua bagagem de culpa - em uma série de ambientes que testam sua força de vontade de ir contra seus instintos mais básicos, a trama analisa o preconceito, o conceito de culpa e crime, questiona as possibilidades de redenção de um homem eternamente marcado por seus delitos e, mais estimulante ainda, o contrapõe a um outro possível criminoso, o que pode torná-lo um heroi, a despeito de seu passado. Sua história de amor com Vicki, também dona de um background depressivo e seus próprios demônios, não é daquelas sentimentais que Hollywood costuma apresentar, o que também é um ponto positivo em sua tentativa de fugir de qualquer tipo de excessos dramáticos, e até mesmo sua relação lacônica com o policial que o vigia apresenta matizes inteligentes e verossímeis. Não bastasse, a cena em que Walter consegue com que sua nova amiguinha desabafe em relação à sua vida familiar é de partir o coração - sem que, para isso, seja necessário mais do que um bom texto, bons atores e uma direção sensível.

Quem procura um filme de suspense que explore com sadismo as entranhas da mente de um pedófilo deve passar ao largo de "O lenhador". Apesar de ter como protagonista um homem condenado por tal crime e nunca deixar que o público se esqueça disso, o filme de Nicole Kassel vai muito mais além do simplismo de seu tema central, alcançando notas superiores e oferecendo bem mais do que a ilustração de um desvio sexual. É um belo trabalho, delicado e inteligente que se escora na interpretação econômica e sensacional de Kevin Bacon, brilhante em um de seus trabalhos mais corajosos e viscerais.

sábado

FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO

FAHRENHEIT 11 DE SETEMBRO (Fahrenheit 9/11, 2004, Fellowship Adventure Group, 122min) Direção e roteiro: Michael Moore. Montagem: Kurt Engfehr, T. Woody Richman, Christopher Seward. Música: Jeff Gibbs. Produção executiva: Agnes Mentre, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Jim Czarnecki, Kathleen Glynn, Michael Moore. Estreia: 17/5/04 (Festival de Cannes)

Palma de Ouro (Melhor Filme) no Festival de Cannes

Quando subiu ao palco que premiou os vencedores do Oscar 2002 para receber sua estatueta de melhor documentário do ano por "Tiros em Columbine", o cineasta Michael Moore foi aplaudido entusiasticamente pela plateia de celebridades quando vociferou um discurso incendiário contra o então presidente George W. Bush. Em seu agradecimento, Moore declarou que fazia documentários porque gostava da verdade e tinha vergonha de viver um país governado por um presidente eleito de forma fictícia (referindo-se ao controverso pleito que derrotou Al Gore) que inventou uma guerra fictícia no Iraque apenas para saciar seus desejos gananciosos. Não é preciso dizer que tal polêmica acendeu no mundo todo uma curiosidade quase desesperada pelo trabalho seguinte do diretor, "Fahrenheit 11 de setembro", que investigava as relações econômicas de Bush com o Oriente Médio - e consequentemente com Osama Bin Laden, o terrorista que articulou o ataque às Torres Gêmeas em 2001. Feito para alertar a população sobre as reais intenções do presidente - e impedir sua reeleição - o filme acabou estreado no Festival de Cannes de 2004, seis meses antes que os eleitores americanos fossem às urnas, mas acabou, apesar de sua contundência, falhando em seu principal objetivo: Bush continuou na Casa Branca mandando jovens inocentes a guerras inúteis. Porém, o propósito do diretor em atingir o maior número possível de espectadores - a ponto de encorajar inclusive downloads ilegais - não pode ter sido atingido com mais sucesso: com uma renda de mais de 200 milhões de dólares de arrecadação mundo afora, "Fahrenheit 11 de setembro" é um dos documentários mais influentes e bem-sucedidos da história. Nada mais merecido.

Se "Tiros em Columbine" já era empolgante e chocante em seu estudo sobre a obsessão americana por armas de fogo - um tema deflagrado pelos assassinatos cometidos por dois adolescentes em uma escola de ensino médio que também inspiraram o elogiado "Elefante", de Gus Van Sant  - "Fahrenheit 11 de setembro" consegue ser ainda mais contundente, pelo fato de focar sua artilharia no dirigente do país mais poderoso do mundo sem dó nem piedade. Retratando Bush como um misto de ganancioso sanguinário e frio e um boçal apatetado e manipulado por interesseiros empresários do ramo do petróleo, Moore foi o responsável pelo ataque mais direto e agressivo jamais realizado pelo cinema a um presidente - mas o faz de forma tão direta e com tantas informações relevantes que é impossível não acabar a sessão concordando com toda a sua fúria. Manipulador? Talvez. Exagerado? Provavelmente. Mas, assim como Oliver Stone fez em "JFK" - um dos melhores filmes dos anos 90 - Michael Moore tem o dom de apresentar suas ideias de maneira tão fascinante que não é dada ao público sequer a chance de questioná-las. E, mesmo que não se conheça os detalhes da história dos EUA ou não se tenha um interesse em particular sobre o assunto, é um desafio até mesmo tirar os olhos da tela enquanto absurdos cada vez maiores desfilam por ela.


A eleição de Bush à presidência - surpreendente até mesmo para os eleitores que já haviam sido noticiados da vitória de seu rival Al Gore pelas emissoras de TV - é que dá o pontapé inicial ao filme, mostrando de cara as manobras políticas e econômicas que permitiram a ele chegar à Casa Branca e manter em pauta os interesses financeiros de sua família, mesmo que a custo da vida de milhares de americanos. Em seguida, o atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001 serve como ponto de partida para um estudo detalhado e indignado sobre como o governo usou a maior tragédia do século até agora para manter a população em constante estado de tensão, medo e paranoia - e assim justificar a invasão ao Iraque e esconder toda a sujeira que envolve a relação do então presidente com empresas de petróleo que lhe rendem milhares e milhares de dólares. Ao mesmo tempo em que expõe de forma clara e didática os meandros da estrutura de poder banhada pela ganância, Moore também mostra aos espectadores o outro lado da moeda, através de depoimentos categóricos que se contradizem quando confrontados com a realidade: é o caso da ufanista dona-de-casa que diariamente iça a bandeira do país em frente à sua casa, acredita piamente nas práticas militares do governo e manda o próprio filho para a guerra - só para depois desabar ao perdê-lo em uma batalha. E também questiona o fato de nenhum congressista - com exceção de um único, democrata - ter filhos no front, já que são favoráveis à guerra.

Ilustrando suas teorias com imagens chocantes dos conflitos no Oriente Médio e sublinhando as ironias da situação com cenas que dispensam quaisquer comentários - como o próprio Bush impassível em uma escola infantil ao saber dos atentado em Nova York e Britney Spears afirmando confiar no presidente durante uma entrevista para a TV - "Fahrenheit 11 de setembro" é um petardo dos maiores já lançados pelo cinema americano contra o status quo. É triste, é inacreditável, é revoltante. E é um dos melhores documentários da história do cinema.

sexta-feira

SYLVIA - PAIXÃO ALÉM DAS PALAVRAS

SYLVIA - PAIXÃO ALÉM DAS PALAVRAS (Sylvia, 2003, BBC Films/British Film Council, 110min) Direção: Christine Jeffs. Roteiro: John Brownlow. Fotografia: John Toon. Montagem: Tariq Anwar. Música: Gabriel Yared. Figurino: Sandy Powell. Direção de arte/cenários: Maria Djurkovic/Philippa Hart. Produção executiva: Jane Barclay, Sharon Harel, Robert Jones, Tracey Scoffield. Produção: Alison Owen. Elenco: Gwyneth Paltrow, Daniel Craig, Blythe Danner, Michael Gambon, Jared Harris. Estreia: 17/10/03

Uma dos maiores ícones da poesia americana de todos os tempos, Sylvia Plath passou a maior parte de sua vida intelectual à sombra do marido, o também poeta Ted Hughes, com quem se casou e teve dois filhos antes de cometer suicídio inalando gás de cozinha - um final previsível para uma história de amor, ciúmes, adultério e frequentes crises de depressão. Dirigido pela neozelandesa Christine Jeffs, o filme "Sylvia, paixão além das palavras" tenta dar um pouco de luz à trajetória de Plath, retratando seu relacionamento com Hughes desde seu primeiro encontro, em 1956, na Inglaterra, até sua trágica morte, em 1963, aos 30 anos de idade. Mesmo sem a densidade psicológica e sensível que Stephen Daldry imprimiu ao seu "As horas" - em que uma das protagonistas era a escritora Virginia Woolf, também suicida - o filme de Jeffs consegue ser satisfatoriamente sóbrio e respeitoso ao rejeitar o enfoque sensacionalista da história e dedicar-se à compreensão do drama de sua protagonista, interpretada por uma Gwyneth Paltrow discreta e paradoxalmente visceral.

Mostrando que o Oscar por "Shakespeare apaixonado" não foi apenas uma questão mercadológica como muitos afirmaram, Paltrow entrega, como a torturada Sylvia Plath, um trabalho de carga dramática intensa e febril inédito em sua carreira. Mesmo quando em seus momentos mais iluminados, a Sylvia criada por Paltrow não consegue esconder, em seu belo e plácido semblante, os demônios que a martirizam e que a fizeram conviver desde cedo com severas crises de depressão suicida. Dona de uma beleza clássica, Gwyneth empresta à poeta a delicadeza que torna ainda mais incompreensível o mundo de pesadelos em que ela vivia presa. A opção acertada do roteiro em situar a ação em um recorte de tempo onde tais pesadelos encontraram um ninho mais do que confortável para se multiplicarem - o casamento com Hughes - joga o espectador em meio a um turbilhão passional sublinhado pela bela trilha sonora de Gabriel Yared e pelo desempenho exemplar de Daniel Craig - antes de tornar-se James Bond e já demonstrando uma presença cênica de impacto e inteligência.


De posse de um papel ingrato - o roteiro não faz questão de demonizar Ted Hughes, mostrando-o como um adúltero quase compulsivo que não se importa em arriscar seu casamento e sua família para dormir com uma das alunas e depois com uma amiga do casal - Daniel Craig faz o possível e o impossível para dar-lhe um mínimo de simpatia, e por incrível que pareça, atinge seus objetivos. Mesmo diante de um poeta mulherengo e (de acordo com o filme) auto-centrado, o público não consegue deixar de ver nele um ser humano normal, repleto de incoerências e cercado por uma atmosfera de tristeza e opressão emocional que ao mesmo tempo lhe serve de inspiração para suas louvadas obras e o impele a buscar desesperadamente por uma forma de respirar. Sua química com Gwyneth Paltrow é essencial para que a atmosfera claustrofóbica que cerca o casal funcione à perfeição, em cenas que tanto exploram a sexualidade dos dois (em cenas belamente fotografadas) quanto as dificuldades que os levam ao inferno compartilhado. Mesmo prejudicados por um ritmo um tanto lento - e por cenas que tentam poetizar o dia-a-dia dos protagonistas - os dois atores estão em um momento inspirado de suas carreiras.

Sem o glamour de uma produção hollywoodiana - o filme é co-produzido pela inglesa BBC - "Sylvia, além das palavras" se concentra mais no conteúdo do que na forma, ainda que nem de longe seja desleixado ou visualmente pobre. Ilustrando sua narrativa com poesias da própria biografada, a cineasta Christine Jeffs busca no vazio dos olhos de Gwyneth Paltrow a maior explicação para seus desvarios melancólicos - e eles transmitem, silenciosamente, tudo que é preciso saber sobre sua atormentada alma. Mesmo que não seja tão repleto de matizes quanto o de Nicole Kidman como Virginia Woolf, o trabalho de Paltrow é um dos mais consistentes de sua trajetória artística, infelizmente ignorado por todas as cerimônias de premiação da temporada.

quinta-feira

O SORRISO DE MONA LISA

O SORRISO DE MONA LISA (Mona Lisa smile, 2003, Columbia Pictures, 117min) Direção: Mike Newell. Roteiro: Lawrence Konner, Mark Rosenthal. Fotografia: Anastas Michos. Montagem: Mick Audsley. Música: Rachel Portman. Figurino: Michael Dennison. Direção de arte/cenários: Jane Musky/Susan Tyson, Chris Nickerson. Produção executiva: Joe Roth. Produção: Elaine Goldsmith-Thomas, Paul Schiff, Deborah Schindler. Elenco: Julia Roberts, Kirsten Dunst, Maggie Gyllenhaal, Julia Stiles, Ginnifer Goodwin, Juliet Stevenson, Marcia Gay Harden, Marian Seldes, John Slattery, Dominic West, Topher Grace. Estreia: 19/12/03

Em 1989 o australiano Peter Weir emocionou o mundo todo ao contar a história de um professor de Inglês que, desafiando a orotodoxia de uma escola para rapazes no final da década de 50, os inspirava a romper com o conformismo e buscar a felicidade através da realização de suas paixões. O filme era "Sociedade dos poetas mortos", que ganhou o Oscar de roteiro original e deu a Robin Williams um dos papéis mais populares de sua carreira e estabeleceu um padrão altíssimo a todas as produções subsequentes que retratavam a relação mestre/alunos. Quem chegou bem perto foi "Mr. Holland, adorável professor" (95), onde Richard Dreyfuss deu vida a um aspirante a compositor que acaba dedicando a vida toda a lecionar em uma escola pública, onde conquista alunos e colegas com sua paixão pela música. Quem tentou e acabou ficando no meio do caminho das boas intenções e objetivos comerciais foi Julia Roberts. A maior estrela de Hollywood juntou-se ao diretor Mike Newell, de "Quatro casamentos e um funeral" em "O sorriso de Mona Lisa", uma versão feminina de "Sociedade", agradável e fotogênica, mas com bem menos profundidade ou emoção.

A trama começa no início do ano letivo de 1953, quando a independente e carismática Katherine Wilson (Roberts, exercitando sem medo seu belo sorriso e os trejeitos que fizeram dela uma das maiores estrelas do cinema americano) chega à tradicional Wellesley, uma escola preparatória feminina das mais respeitadas da Nova Inglaterra para ensinar História da Arte. Tão logo as aulas tem início, porém, ela descobre que seus métodos de ensino - pouco ortodoxos em relação à rigidez dos programas da escola - fogem ao esperado pela direção e até mesmo pelas alunas, que frequentam as aulas apenas como uma espécie de temporada de espera antes de começarem suas vidas domésticas, como mulheres casadas e donas-de-casa dedicadas. De certa forma chocada com a visão de mundo tão estreita das jovens, ela começa uma espécie de queda de braço com a editora do jornal estudantil, Betty Warren (Kirsten Dunst), que está às vésperas do casamento e sente-se particularmente ofendida com as ideias progressistas de Katherine. Apoiada por outro professor, Bill Dunbar (Dominic West) - que se apaixona por ela - a mestra resolve dedicar seus esforços em convencer a ambiciosa porém conformista Joan Brandwyn (Julia Stiles) a não abdicar de seus sonhos de cursar Direito mesmo depois de casada.


Para que se goste de "O sorriso de Mona Lisa" é essencial que se deixe seduzir pelos talentos de Julia Roberts e não se tente comparar com o incomparável "Sociedade dos poetas mortos". O filme de Mike Newell, apesar das semelhanças em número suficiente para forçar paralelos com a obra de Weir, não parece buscar a densidade emocional deste, e baseia-se firmemente no carisma de Julia para cativar a audiência. Isso não implica, no entanto, que o roteiro, de fortes cores feministas, não dê espaço para que seus personagens coadjuvantes brilhem: enquanto narra as batalhas de sua protagonista para encontrar espaço em um mundo cercado de regras e mandamentos arcaicos, a trama também acompanha os dramas de algumas das alunas de Katherine, cada uma buscando a felicidade a seu modo. É assim que, além da reprimida e cruel Betty Warren, surgem em cena a liberal Giselle Levy (Maggie Gyllenhaal) - que tem um romance com o professor que depois se envolve com Katherine -, a sonhadora Joan e a romântica Connie Baker (Ginnifer Goodwin), que, desprovida dos encantos físicos das colegas, procura viver uma grande história de amor. Além disso, o filme também dá conta de apresentar ao público ao menos duas outras professoras com histórias dignas de nota: a solteirona Nancy Abbey (Marcia Gay Harden), que não supera a perda do noivo na II Guerra, e Amanda Armstrong (Juliet Stevenson), que vive das lembranças de seu relacionamento com outra professora, já falecida.

Ao espalhar seu foco entre tantas personagens, o roteiro de "O sorriso de Mona Lisa" acaba por não aprofundar-se em nenhuma das tramas que estabelece, apesar de dar à Katherine a primazia das atenções. Sua paixão pelo magistério, pela arte e pela possibilidade de mudar a vida de suas alunas empresta ao filme de Newell - cuja direção sem personalidade depõe mais contra a produção do que sua tentativa em abraçar várias histórias - algumas cenas bastante interessantes, que discute os critérios de julgamento de obras artísticas, os movimentos modernistas do feminismo e até as responsabilidades da educação formal em relação à comunidade. São temas intrigantes, abordados com leveza e simpatia, de acordo com as pretensões do filme. Não é uma obra-prima nem tampouco é uma produção inesquecível. Mas é uma boa sessão da tarde descompromissada.

quarta-feira

UM AMOR NA TRINCHEIRA

UM AMOR NA TRINCHEIRA (Soldier's wife, 2003, Showtime, 112min) Direção: Frank Pierson. Roteiro: Ron Nyswaner. Fotografia: Paul Sarossy. Montagem: Katina Zinner. Música: Jan A.P. Kaczmarek. Figurino: Patrick Antosh. Direção de arte/cenários: Lindsey Hermer-Bell/David Edgar. Produção: Doro Bachrach, Linda Gottlieb. Elenco: Troy Garity, Lee Pace, Shawn Hatosy, Andre Braugher, Philip Eddols, Merwin Mondesir. Estreia: 20/01/03 (Festival de Sundance)

Filho da atriz Jane Fonda com o ativista político Tom Hayden, o ator Troy Garity não é um rosto conhecido do grande público, construindo sua carreira sem a sombra do sobrenome famoso e sem participar de superproduções milionárias. Tal discrição, no entanto, não significa falta de talento, como ele deixa bem claro no filme "Um amor na trincheira", realizado para a TV a cabo americana e que lhe deu uma indicação ao Golden Globe e ao Independent Spirit Awards. Dirigido por Frank Pierson (roteirista oscarizado do clássico "Um dia de cão") e baseado em uma história real, o filme também marcou a estreia do ator Lee Pace, que anos depois faria sucesso como o protagonista da telessérie "Pushing daisies". Irreconhecível na pele de um transsexual que se envolve em uma trama de amor e violência, Pace entrega uma atuação irretocável em um filme acima da média e, considerando o veículo para o qual foi produzido, bastante ousado na temática e em cenas bastante gráficas de sexo.

Escrito por Ron Nyswaner - indicado ao Oscar por "Filadélfia" - "Um amor na trincheira" (título um tanto equivocado, uma vez que a trama se passa longe de qualquer campo de batalha) começa com a chegada do introvertido Barry Winchell (vivido por Garity) a um quartel-general do interior do Tennessee. Com pouca experiência na bagagem, ele é auxiliado pelo Sargento Diaz (Andre Braugher) a encontrar um meio de conviver com um grupo de colegas de personalidades bastante diversas, em especial o hiperativo Justin Fisher (Shawn Hatosy), que sofre com problemas relativos à sua dependência em remédios. Os dois começam uma espécie de amizade torta - Fisher não parece ser uma pessoa das mais confiáveis - e vão juntos, em um grupo com outros soldados, a uma boate gay da cidade, chamada Visions, que tem apresentações de drag-queens entre suas atrações. Uma dessas artistas, Calpernia Addams (Lee Pace) acaba chamando a atenção de Winchell, que se apaixona por ela a despeito de nunca ter tido inclinações homossexuais. O romance hesitante entre os dois - ela com medo de ser rejeitada posteriormente, ele confuso em relação a seus sentimentos - é ameaçado também pelo preconceito: lutando contra os próprios desejos reprimidos, Fisher aproveita a chegada de um novo recruta para incentivar a violência homofóbica que resultará em uma tragédia.


Intercalando em seu roteiro a história complexa do relacionamento entre Calpernia e Winchell - recheada de demônios recíprocos e banhada em uma sensualidade realista mas nunca vulgar - e a tensa relação entre o rapaz e seus colegas de farda - sempre a um passo da violência mais cruel e inesperada - "Um amor na trincheira" conduz o espectador a um universo repleto de dicotomias e paradoxos (masculino/feminino; amor/ódio; carinho/violência), mas retratado com seriedade por um diretor cujo objetivo não é explorar suas características excêntricas, e sim os seres humanos por trás delas. Lee Pace imprime uma sobriedade comovente como Calpernia, transmitindo ao espectador todas as angústias de sua personagem sem apelar para a caricatura barata. Construindo-a com respeito e sensibilidade, Pace dá a ela uma grandeza trágica e estoica que contrasta com a fragilidade emocional de Winchell, vivido por Garity com um misto de masculinidade delicada e força física sempre prestes a explodir. A química entre ambos é excepcional, especialmente nos momentos íntimos, em que equilibram desejo, romance e medo em iguais proporções. É admirável, aliás, o trabalho de maquiagem que deixa Pace irreconhecível na pele de Calpernia Addams: em cena, ele é uma mulher quase perfeita, o que explica a atração irresistível de seu amado soldado.

E se o casal central conquista pela química irretocável, o elenco coadjuvante também é digno de nota, em especial o jovem Shawn Hatosy, que interpreta o quase psicopata Justin Fisher. Vindo de papéis pequenos em filmes como "Será que ele é?" ou de mais destaque, como um dos herois de "Prova final", ele surpreende ao conceber um personagem extremamente difícil, cujas idiossincrasias e desejos controlados e não aceitos conduzem a um ato de absoluta e inexplicável crueldade. O terço final do filme, que leva a tal desgraça, é de uma claustrofobia quase palpável, acentuada pela direção parcimoniosa e delicada de Pierson, incapaz de explorar o perfil voyeurístico do espectador pelo simples prazer do ato. Honrando a história real no qual é baseado, "Um amor na trincheira" é um belo espetáculo, digno e chocante.

terça-feira

EM CARNE VIVA

EM CARNE VIVA (In the cut, 2003, Pathe Productions, 119min) Direção: Jane Campion. Roteiro: Jane Campion, Susanna Moore, romance de Susanna Moore, colaboração de Stavros Kazantzidis. Fotografia: Dion Beebe. Montagem: Alexandre De Franchesci. Música: Hilmar Orn Hilmarsson. Figurino: Beatrix Aruna Pasztor. Direção de arte/cenários: David Brisbin/Andrew Baseman. Produção executiva: Effie T. Brown, François Ivernel. Produção: Nicole Kidman, Laurie Parker. Elenco: Meg Ryan, Mark Ruffalo, Jennifer Jason-Leigh. Estreia: 09/9/03 (Festival de Toronto)

Dentre as características da filmografia da cineasta australiana Jane Campion, duas se destacam nitidamente: o ritmo pouco ágil e a naturalidade com que ela encara a nudez e o sexo. Foi assim, por exemplo, em seu filme mais famoso, o multi-premiado "O piano", em que Holly Hunter e Harvey Keitel se envolviam em um romance nos confins da Nova Zelândia no começo do século XX. Tais características se repetem em "Carne viva", em que ela mergulha em um gênero inédito em sua carreira (o policial) e volta a explorar a sexualidade humana, dessa vez sob o véu de uma história recheada de violência e tensão. Baseada em um romance de Susanna Moore que desejava filmar desde seu lançamento em 1996, Campion mesclou o drama psicológico, o romance erótico e o suspense policial do livro em um filme que, apesar das expectativas, é frustrante nas três frentes: não é profundo o bastante em seu estudo sobre a psique humana, não intriga o suficiente em termos de mistério e só não chega a ser totalmente indiferente no erotismo por explorar, em cenas bastante ousadas, um lado ainda totalmente desconhecido de uma das atrizes mais populares dos anos 90, Meg Ryan.

Em um momento crítico de sua trajetória artística - depois do fracasso de bilheteria de "Prova de vida" e do fim do casamento com Dennis Quaid, resultado de um escandaloso romance com seu parceiro de cena Russell Crowe - Ryan aceitou o papel central de "Em carne viva" como uma forma de mostrar que, além de ser a rainha das comédias românticas da década anterior, também era uma atriz capaz de aventurar-se por gêneros e enredos mais sombrios. Ficando com a protagonização que seria de Nicole Kidman - que pulou fora por motivos pessoais relacionados a seu divórcio com Tom Cruise mas manteve-se no cargo de produtora - a estrela de "Harry & Sally, feitos um para o outro" assumiu a responsabilidade de romper com a imagem pudica e romântica com que cimentou seu sucesso e, apesar do fracasso financeiro do filme, mostrou fôlego para uma fase mais madura na carreira - fase essa que, infelizmente, não vingou, graças a sucessivos fiascos comerciais.


No filme de Campion, Ryan interpreta Frannie Avery, uma professora de literatura que, com o objetivo de escrever um livro sobre as gírias dos guetos nova-iorquinos, frequenta sem medo bairros, bares e boates pouco recomendáveis para a segurança. Solteira e atraente, ela acaba se envolvendo na investigação de um violento assassinato cometido em sua vizinhança (mais um em um série de homicídios semelhantes) e conhece o detetive encarregado do caso, Giovanni Malloy (Mark Ruffalo) - que desconfia que um aluno seu possa ser o culpado. Incentivada por sua meio-irmã Pauline (Jennifer Jason Leigh), Frannie inicia um intenso caso sexual com o policial, separado da esposa e pai de dois filhos pequenos cujo parceiro é tão violento quanto os criminosos que prende pelas ruas. Porém, apesar de estar extremamente atraída por Malloy, a professora não consegue entregar-se totalmente ao romance por desconfiar que ele seja o responsável pelas mortes: em um de seus passeios pelos bares barra-pesada que frequenta, ela viu a vítima fazendo sexo oral em seu provável assassino, que tem uma tatuagem idêntica à do investigador.

A busca pela identidade do assassino é o que menos importa no roteiro, co-escrito pela diretora e pela autora do livro que deu origem ao filme, servindo apenas como pano de fundo para um inventário superficial de paranoias, traumas e neuroses modernas que nem de longe desperta maior interesse em um público acostumado a consumir tudo isso em produções menos pedantes e enfadonhas. Em sua tentativa de cercar o filme de uma atmosfera sombria e claustrofóbica, a cineasta acaba pesando a mão em um suspense vazio, esquecendo de dar profundidade e clareza a seus personagens, que parecem jogados na trama, tendo como finalidade apenas servir como elementos gráficos de suas bem cuidadas cenas, que, justiça seja feita, são plasticamente interessantíssimas - em especial as tórridas cenas de sexo entre Meg Ryan e Mark Ruffalo, em um de seus primeiros papéis principais e já mostrando talento e desinibição de sobra. Fotografadas com bom gosto e enfatizando a naturalidade do ato, tais cenas acabam por se tornar a maior qualidade do filme, que de resto é apenas mais um policial mediano e pretensioso. Tem quem goste, mas para os demais é apenas chato e metido a profundo.

segunda-feira

O HOMEM QUE COPIAVA

O HOMEM QUE COPIAVA (O homem que copiava, 2003, Casa de Cinema de Porto Alegre/Sony Pictures, 124min) Direção e roteiro: Jorge Furtado. Fotografia: Alex Sernambi. Montagem: Giba Assis Brasil. Figurino: Rosângela Cortinhas. Direção de arte/cenários: Fiapo Barth/Silvia Guerra, Bolivar Lauda, Marnei Pereira. Produção executiva: Nora Goulart, Luciana Tomasi. Elenco: Lázaro Ramos, Leandra Leal, Luana Piovani, Pedro Cardoso, Júlio Andrade, Paulo José. Estreia: 13/6/03

Depois de testar seu talento como realizador de longas-metragens com o simpático e despretensioso "Houve uma vez dois verões", o cineasta gaúcho Jorge Furtado - conhecido pela coleção de prêmios acumulados pelo curta "Ilha das flores" - fez o que todo mundo esperava que ele fizesse: deu mais um passo à frente em sua brilhante carreira. Mais ambicioso - em termos artísticos e narrativos - e mais comercial - por ter em seu elenco nomes conhecidos nacionalmente, como Lázaro Ramos, Leandra Leal e Luana Piovani - "O homem que copiava" consegue ser ainda melhor do que o primeiro filme de Furtado, com uma trama inteligente e repleta de desdobramentos que torna impossível ao espectador adivinhar o que vem pela frente. Utilizando-se de diferentes linguagens para contar sua história de amor e contravenção, Furtado apresenta um misto de comédia, romance e filme policial que lhe assegura, sem favor nenhum, como um dos mais criativos cineastas brasileiros de sua geração - e isso sem deixar de lado seu estilo próprio e suas raízes.

O personagem central do filme é André (Lázaro Ramos), um jovem de classe média baixa que mora em Porto Alegre e trabalha como operador de fotocopiadora - ou simplesmente como "o cara do xerox". Ganhando um salário que não lhe permite quase nenhuma espécie de luxo, ele sonha ganhar a vida como desenhista, enquanto leva uma rotina pacata entre o trabalho e o lar, que divide com a mãe e a paixão por Sílvia (Leandra Leal), uma jovem que mora no prédio em frente ao seu e que espiona com seu binóculo comprado com a economia de um ano de salário. Tentando aproximar-se da garota - que trabalha em uma loja de roupas femininas - ele acaba caindo na tentação de falsificar uma nota de 50 reais com a nova máquina de cópias coloridas de seu patrão. O que poderia ser apenas uma escorregadela ética acaba, porém, se transformando em algo maior quando entra em cena o ambicioso e pouco inteligente Cardoso (Pedro Cardoso, sensacional), que, na tentativa de seduzir a bela Marinês (Luana Piovani) - colega de André - convence o rapaz a manter-se no ramo. Quando o tímido e desajeitado homem da copiadora troca a nota de 50 reais em um estabelecimento comercial, tem início uma série de eventos imprevisíveis e perigosos que ameaçam a integridade dos quatro.


Imprevisível e extremamente divertido - Furtado é um mestre em diálogos inteligentes e bem-humorados - "O homem que copiava" funciona em todos os níveis narrativos que apresenta, graças ao ritmo ágil imposto pela edição do competente Giba Assis Brasil (também cineasta) e ao roteiro recheado de reviravoltas, desvios e saltos cronológicos que, ao invés de confundir o público, apenas aumenta sua curiosidade em relação ao destino de seus protagonistas - todos eles fracassados em maior ou menor grau, e todos eles em busca da redenção financeira que seu ato desonesto pode lhes acarretar. Em um de seus maiores méritos, o roteiro abdica de qualquer tipo de julgamento moral, cobrindo André e companhia de um manto de isenção que praticamente ignora o fato de que todos estão cometendo graves infrações à lei (acredite, falsificar uma nota de 50 dólares é apenas o começo de tudo). Em especial dando à André uma aura de inocência quase infantil - característica que Lázaro Ramos aproveita com extrema sensibilidade - o filme foge das discussões sociopolíticas para manter seu foco no que realmente interessa: uma história boa o bastante para prender o espectador do início ao fim.

E se boa parte dos méritos de "O homem que copiava" é do Jorge Furtado roteirista, não é possível esquecer que também digno de elogios é o Jorge Furtado diretor de atores: até mesmo Luana Piovani está convincente em cena, na pele da exuberante Marinês, objeto de desejo do ambicioso Cardoso e que acaba entrando no esquema como parte importante do desenrolar da trama. Leandra Leal também se destaca, criando uma Sílvia aparentemente passiva que, em um momento crucial, se transforma em uma mocinha das mais interessantes do cinema nacional moderno - tudo sem perder a coerência dramática ou o nível da interpretação. E Pedro Cardoso, mesmo repetindo o estilo de interpretação que lhe deu fama, sai-se extraordinariamente bem, com uma química impecável com Lázaro Ramos em cenas memoráveis, de um humor sutil e perspicaz.

Empolgante, brilhante e divertido, "O homem que copiava" é um dos melhores filmes brasileiros desde a retomada, apesar de muitas vezes ser esquecido nas listas feitas por críticos e ditos especialistas. A anos-luz da estética marginal do cinema de Chico Assis ou das produções pasteurizadas da Globo Filmes, é um meio-termo altamente satisfatório entre os dois estilos. É popular sem ser medíocre, é inteligente sem ser pedante e é bem acabado sem deixar que isso se torne seu maior atrativo. É, enfim, um programaço.

domingo

A MÃO DO DIABO

A MÃO DO DIABO (Frailty, 2001, David Kirschner Productions/American Entertainment, 100min) Direção: Bill Paxton. Roteiro: Brent Hanley. Fotografia: Bill Butler. Montagem: Arnold Glassman. Música: Brian Tyler. Figurino: April Ferry. Direção de arte/cenários: Nelson Coates/Linda Lee Sutton. Produção executiva: Tom Huckabee, Karen Loop, Tom Ortenberg, Michael Paseornek. Produção: David Blocker, David Kirschner, Corey Sienega. Elenco: Bill Paxton, Matthew McConaughey, Powers Booth, Matt O'Leary, Jeremy Sumpter, Levi Kreis, Luke Askew. Estreia: 17/11/01

Ator de inúmeros sucessos de bilheteria, muitos deles sob o comando de James Cameron - "Aliens, o resgate", "True lies", "Titanic" - Bill Paxton fez sua estreia como diretor em um gênero inesperado: o suspense. Uma história de violência, fé e amor entre pai e filhos, "A mão do diabo" foi aplaudido entusiasticamente tanto por Cameron quanto por nomes consagrados como Sam Raimi e Stephen King, e mostrou em Paxton um talento surpreendente em explorar com discrição e sutileza uma trama que, em mãos menos discretas, poderia descambar para a sanguinolência excessiva. Assumindo também um dos papéis principais da história, ele consegue inclusive disfarçar suas fragilidades como ator, desviando o foco da narrativa para o ótimo adolescente Matt O'Leary, que tem a difícil tarefa de guiar uma trama densa e repleta de possibilidades dramáticas que também deu a Matthew McConaughey um dos melhores papéis de sua carreira pré-Oscar.

McConaughey vive Fenton Meiks, um homem que chega à sede do FBI em Dallas, durante uma noite chuvosa, querendo conversar com o agente Wesley Doyle (Powers Boothe), responsável pela investigação de uma série de crimes cometida por um serial killer chamado "A mão de Deus". Segundo Meiks, o autor dos crimes é seu irmão caçula, Adam, e os motivos dos assassinatos remetem à sua infância, quando seu pai (Bill Paxton) os obrigou a testemunhar e participar de várias mortes, de acordo com ele devido à orientação divina. Viúvo e pai dedicado, o até então tranquilo e carinhoso pai de família transformou-se em um anjo exterminador, matando a machadadas todos aqueles constantes na lista enviada por Deus. Chocado com a história contada pelo inesperado informante, o policial aceita levá-lo até o local onde estão enterradas algumas das vítimas do criminoso - e a trama então dá sua virada (coerente e apropriada).


Com um roteiro enxuto e com doses exatas de suspense e drama, "A mão do diabo" tem uma grande vantagem em relação a outros filmes do gênero: não cai na tentação de ser engraçadinho. A direção de Paxton, segura e clássica, não recorre a momentos de alívio cômico, concentrando-se exclusivamente na narração de sua história, de forma a envolver o espectador desde suas primeiras cenas até o final - aterrador mas nunca além dos limites do bom gosto. Como uma boa história de detetive temperada com sobrenatural (ou não, dependendo do ponto de vista), o filme conquista também pela suavidade com que apresenta sequências que poderiam facilmente escorregar em uma violência redundante. Utilizando-se de uma fotografia em tons sóbrios, Paxton ameniza a crueldade de suas cenas justificando-as através das palavras do protagonista, um tipo messiânico que tanto pode estar nitidamente enlouquecendo quanto mostrando-se um escolhido de Deus para limpar o mundo. Essa dualidade, que se mantém até o final da projeção, é outro acerto gigantesco da produção, por permitir ao espectador tomar parte no processo de compreensão da trama.

E se Paxton não é exatamente um grande ator, como diretor ele consegue a façanha de extrair de seu elenco interpretações do mesmo nível do roteiro. Matthew McConaughey sai-se muito bem como o misterioso Fendon Meiks, enquanto cabe a Powers Boothe o ingrato papel de ouvinte - até a reviravolta final, que vira o jogo e transforma o filme em um duelo dos mais empolgantes (sem que para isso seja necessário um orçamento milionário ou efeitos especiais mirabolantes). Mas quem se destaca é mesmo Matt O'Leary, que empresta a seu adolescente Fenton Meiks uma força dramática que vai se avolumando no decorrer da narrativa até assumir o papel de heroi em uma das cenas mais arrepiantes da produção - que fará ainda mais sentido nos momentos finais da história.

Contando sua história à moda antiga - se dedicando aos personagens mais do que aos sustos - Bill Paxton faz de "A mão do diabo" um dos grandes filmes de suspense de seu tempo. Uma pena que, até hoje, o ator não voltou para o banco de diretor.

sábado

A JANELA DA FRENTE

A JANELA DA FRENTE (La finestra di fronte, 2003, R&C Produzioni, 106min) Direção: Ferzan Ozpetek. Roteiro: Ferzan Ozpetek, Gianni Romoli. Fotografia: Gianfilippo Corticelli. Montagem: Patrizio Marone. Música: Andrea Guerra. Figurino: Catia Dottori. Direção de arte/cenários: Andrea Crisanti/Massimiliano Nocente. Produção: Tilde Corsi, Gianni Romoli. Elenco: Giovanna Mezzogiorno, Raoul Bova, Massimo Girotti, Filippo Nigro, Serra Yilmaz. Estreia: 28/02/03

Na Roma de 1943, em plena II Guerra Mundial, um jovem auxiliar de padeiro se engalfinha violentamente com seu patrão, aparentemente sem nenhum motivo. Seis décadas depois, um senhor de idade e sem memória vaga pelas ruas da cidade e é auxiliado por um casal em crise, que tentará ajudá-lo a recuperar os dados que podem lhe devolver à sua casa. Esses dois acontecimentos, a princípio aleatórios mas aos poucos interligados, são a base de "A janela da frente", belo drama romântico do cineasta turco Ferzan Ozpetek, que consegue, em menos de duas horas, equilibrar um par de histórias de amor separadas por sessenta anos sem aborrecer nem confundir a plateia, entregando-lhe, ao final da projeção, um espetáculo sensível e honesto sobre relações humanas e sonhos perdidos. Também diretor do elogiado "Um amor quase perfeito" - que retratava a relação de uma mulher com o amante gay de seu falecido marido - Ozpetek é um realizador mais preocupado com as nuances da alma humana do que com estripulias visuais, o que faz de seus filmes experiências bastante ricas emocionalmente. Não é diferente dessa vez: mesmo que utilize com inteligência artifícios visuais pouco frequentes em sua carreira, é a alma de cada um de seus protagonistas que tem importância vital à narrativa.

Em seu último filme, Massimo Girotti - ator de clássicos italianos de Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Pier Paolo Pasolini, entre outros, e a quem o filme é dedicado - interpreta o misterioso Simone, o homem desmemoriado que o destino põe no caminho de Giovanna (Giovanna Mezzogiorno, de "O último beijo") e Filippo (Filippo Nigro), um belo casal que enfrenta graves problemas financeiros e de relacionamento: ela abandonou o sonho de construir uma carreira de confeiteira para trabalhar como fiscal em uma empresa que vende frangos congelados e ele não consegue manter-se em nenhum emprego, por mais esforço que faça. Pais de dois filhos pequenos, eles tem ideias conflitantes também em relação ao próprio Simone, que Filippo insiste em levar para sua casa depois de uma frustrada tentativa de identificação na delegacia. As brigas constantes entre eles acaba aproximando Giovanna de Lorenzo (Raoul Bova), gerente de banco que mora no prédio em frente ao seu e não esconde a atração que sente por ela. Juntos, eles acabam por começar a desvendar a verdade sobre o enigmático veterano quando descobrem que ele é um sobrevivente do Holocausto.


Soltando as pistas sobre a real identidade de Simone aos poucos, enquanto explora com delicadeza e inteligência o nascente romance entre Giovanna e Lorenzo, o roteiro co-escrito pelo cineasta equilibra seus dois focos narrativos sem atropelos, dedicando atenção a cada um deles com igual carinho. Conforme a história de Simone vai se revelando ao público - com seus desdobramentos trágicos e inesperados - ela também vai afetando, com sua força, o cotidiano de Giovanna, que passa a questionar suas escolhas e seu destino. Mesmo casada com um homem bom, honesto e dedicado à família, ela não deixa de sentir que a chama da paixão e do desejo há muito vem se extinguindo, e que a presença de Lorenzo - charmoso, inteligente, carinhoso - pode ser o catalisador de importantes mudanças em sua vida. Para isso, ela conta com o apoio da vizinha Emine (Serra Yilmaz), uma imigrante ilegal que também é sua colega de trabalho e, consciente de seus problemas conjugais, a incentiva a tentar um novo e excitante romance.

Com um desfecho coerente e melancólico, que sublinha o talento de Ozpetek em contar histórias simples e emocionalmente realistas, "A janela da frente" é um filme tipicamente italiano - com um subtexto sociopolítico que comenta o desemprego, a imigração e as consequências ainda sentidas da II Guerra - sem os exageros normalmente associados à filmografia do país. Bem dirigido, escrito com sensibilidade e interpretado por atores nitidamente apaixonados pela história que estão contando, é mais um belo trabalho na carreira do diretor, que não esconde sua simpatia pelas pessoas comuns enquanto as retrata com grandiosidade e generosidade. Um filme a ser descoberto!

quinta-feira

ADEUS, LÊNIN

ADEUS, LÊNIN (Good bye, Lenin, 2003, X-Creative Pool Film, 100min) Direção: Wolfgang Becker. Roteiro: Bernd Lichtenberg, colaboração de Wolfgang Becker, Achim von Borries, Hendrick Handloegten, Christoph Silber. Fotografia: Martin Kukula. Montagem: Peter R. Adam. Música: Yann Tiersen. Figurino: Aenne Plaumann. Direção de arte/cenários: Lothar Holler/Matthias Klemme. Produção: Stefan Arndt. Elenco: Daniel Bruhl, Katrin Sab, Chulpan Khamatova, Maria Simon, Florian Lukas, Alexander Beyer. Estreia: 09/02/03 (Festival de Berlim)

Falar de política em tom de comédia de costumes não é tarefa das mais fáceis, principalmente quando se tem o objetivo de conquistar um público não exatamente acostumado a sutilezas. Quando o filme em questão é de origem alemã, então, é cruzar os dedos e torcer para que a plateia passe por cima dos preconceitos e descubra que humor nem sempre significa piadas escatológicas ou personagens histéricos. Se "Corra Lola, corra", de Tom Tykwer deixou bem claro em 1999 que a cinematografia germânica moderna tinha espaço de sobra para narrativas mais ágeis e mais populares do que as firulas intelectualoides de gente como Wim Wenders e seus anjos melancólicos, o simpático "Adeus, Lênin", de 2003, explorou um novo viés do cinema do país: a crítica social com contornos familiares. Dirigido por Wolfgang Becker e estrelado por Daniel Bruhl - que se tornaria em poucos anos um dos nomes mais significativos do cinema alemão - o filme é uma deliciosa e inteligente comédia recomendada a todos aqueles que procuram uma alternativa ao cinemão comercial hollywoodiano.

Inspirado livremente em acontecimentos reais dos dois últimos anos de vida de Lênin - que, protegido por Stalin não tinha acesso a nenhuma notícia sobre política graças a jornais pré-editados por ele - o filme de Becker se passa em uma Berlim às vésperas da queda do muro que separava as Alemanhas Oriental e Ocidental. No lado oriental vive uma idealista mãe de família que, abandonada pelo marido, criou sozinha o casal de filhos sem nunca deixar de lado sua dedicação quase fanática ao regime socialista. Durante uma manifestação política, ao ver o filho Alex (Daniel Bruhl) ser preso pela polícia, ela sofre um enfarte e entra em coma, no qual permanece por oito meses. Nesse meio-tempo, o país sofre transformações radicais, e quando ela finalmente acorda, seus filhos recebem dos médicos a instrução de poupá-la de quaisquer aborrecimentos, que podem causar um novo ataque, dessa vez fatal. Sabendo que a notícia de que os dogmas políticos de sua mãe não são mais válidos com a nova configuração do país, Alex tem a ideia de esconder dela toda e qualquer pista sobre a verdade. Começa assim uma odisseia para impedí-la de ter acesso aos telejornais, às ruas da cidade e à qualquer menção de que os hábitos ocidentais invadiram o dia-a-dia dos berlinenses orientais.


Mesmo sendo filme de uma piada só, "Adeus, Lênin" conquista o espectador sem fazer muito esforço, graças à simpatia do elenco e à inteligência com que o roteiro desenvolve sua trama, equilibrando com suavidade o humor sutil e o melodrama. Enquanto protege sua mãe da desilusão de ver seus ideais destruídos junto com o muro de Berlim, Alex vive uma terna história de amor com sua jovem enfermeira e precisa lidar com a revolta da irmã, que apaixonou-se por um alemão do lado ocidental e, apesar de entender as razões do irmão, não vê a hora de voltar a ter uma vida normal, repleta dos prazeres a que passou a ter direito com as reformas ocorridas. Ao mesmo tempo, existe o trauma da separação dos pais, que acompanha Alex desde a infância - e que se resolve sem barracos ou lágrimas excessivas, mostrando a parcimônia dos roteiristas em explorar as emoções da história. Percorrendo as ruas de uma Berlim reunificada - ainda que modificada por efeitos especiais discretos - a câmera de Becker também ajuda o espectador a ter a consciência de como foi a adaptação dos alemães a coisas básicas como a chegada da Coca-cola e a Copa do Mundo de 1990, que reunificou a todos também em termos culturais.

Divertindo sem ofender a inteligência e falando de política sem tomar partido ou fazer qualquer tipo de panfletarismo - ainda que não deixe de ficar claro a simpatia do diretor pela ocidentalização do país - "Adeus, Lênin" é um dos filmes mais interessantes do novo cinema alemão, surgido após a queda do muro de Berlim. Conquistando a plateia logo de cara e envolvendo-a nas aventuras de Alex em cumprir seu objetivo - com inteligência e perspicácia - também cativa por apresentar personagens adoráveis, simples e humanos, de fácil identificação apesar de suas peculiaridades. Um pequeno grande filme!

quarta-feira

SPIDER - DESAFIE SUA MENTE

SPIDER, DESAFIE SUA MENTE (Spider, 2002, Odeon Films/Capitol Films, 98min) Direção: David Cronenberg. Roteiro: Patrick McGrath, romance de sua autoria. Fotografia: Peter Suschitzky. Montagem: Ronald Sanders. Música: Howard Shore. Figurino: Denise Cronenberg. Direção de arte/cenários: Andrew Sanders/Marina Morris, Clive Thomasson. Produção executiva: Jane Barclay, Charles Finch, Simon Franks, Victor Hadida, Sharon Harel, Zygi Kamasa, Martin Katz, Hannah Leader, Luc Roeg. Produção: Catherine Bailey, David Cronenberg, Samuel Hadida. Elenco: Ralph Fiennes, Miranda Richardson, Gabriel Byrne, Lynn Redgrave, John Neville. Estreia: 21/5/92 (Festival de Cannes)

Capgras é uma síndrome psicológica real: seus portadores acreditam, sem sombra de dúvidas, que pessoas próximas a eles foram substituídas por impostores idênticos. Tal distúrbio é o ponto central de "Spider, desafie sua mente", mais um brilhante e perturbador filme do cineasta canadense David Cronenberg. Com roteiro do escritor Patrick McGrath inspirado em um romance de sua autoria, o filme acompanha os desvãos da mente distorcida de seu protagonista sem preocupar-se em ser didático, imergindo o público em um emaranhado de memórias alteradas, violência e adultério comandados por uma avassaladora interpretação de Ralph Fiennes. Silencioso, minimalista e assustador, o ator inglês entrega uma das maiores performances de sua carreira, injustamente ignorada por todas as cerimônias de premiação da temporada - e hipnotiza a plateia desde sua primeira aparição em cena.

Seu personagem, Dennis Clegg, é um homem que, depois de ter passado mais de vinte anos em uma instituição psiquiátrica, volta ao convívio da sociedade apesar de seu diagnóstico de esquizofrenia aguda. Com a ajuda de seus médicos, ele encontra um lar na pensão da Sra. Wilkinson (Lynn Redgrave), um local que abriga vários outros doentes mentais em graus diversos de patologia. Introvertido e paranoico, ele pouco interage com os demais moradores da pensão, preferindo, ao invés disso, descrever em um diário todas as suas impressões e lembranças - em um idioma que só ele consegue compreender. Torturado por suas lembranças, Clegg - cujo apelido de infância é Spider - passa os dias caminhando pelos arredores de sua antiga casa, tentando refazer em seu pensamento todos os acontecimentos que o levaram à instituição quando ainda era uma criança. Frequentando os bares e parques do bairro, ele volta a viver o drama de pertencer à uma família disfuncional desfeita por uma tragédia.


Na Londres dos anos 50, Clegg é um menino aparentemente normal, ainda que extremamente tímido. Filho único, ele presencia frequentemente as brigas entre seus pais, uma dona de casa dedicada (Miranda Richardson) e um encanador mulherengo e alcóolatra (Gabriel Byrne) conhecido em todos os bares das redondezas - e pelas prostitutas locais. É uma dessas mulheres (também vivida por Richardson, em um desempenho extraordinário) que acaba sendo a catalisadora da grande mudança na vida do garoto, quando, depois da violenta morte de sua mãe (assassinada depois de flagrar o marido com outra mulher), se casa com seu pai e passa a morar com os dois. Na mente traumatizada do pequeno Spider ela é exatamente igual fisicamente à sua amada e falecida mãe, o que acaba o levando a uma situação de confusão psicológica que tem um desfecho ainda mais trágico.

Sem deixar ao espectador uma linha clara entre o que é realidade e o que é apenas fruto da imaginação conflituosa de Spider, o roteiro de McGrath e a direção de Cronenberg borra propositalmente os limites entre as duas situações, transformando seu filme em uma experiência fascinante. Com seu olhar alucinado e vazio, Ralph Fiennes carrega nas costas a responsabilidade de intrigar e surpreender a audiência, e o faz com a segurança de sempre, construindo um personagem complexo com uma riqueza de detalhes (físicos e emocionais) impressionante - desde a forma como anda até a maneira como se relaciona com os colegas da pensão, tudo é minimamente calculado para dar consistência a um papel que, em mãos mais propensas a exageros, cairia fatalmente no ridículo ou no exagerado. Sua economia dramática, além do mais, encontra eco na fantástica interpretação de Miranda Richardson, que se divide em duas personagens antagônicas com uma naturalidade chocante: se Fiennes é a alma de "Spider", ela é o corpo e a culpa, capaz de deixar qualquer um de queixo caído.

Tenso, pesado, complexo - mas por isso mesmo brilhante, inteligente e melancólico - "Spider, desafie sua mente" é um dos trabalhos mais sensíveis de David Cronenberg, que deixa de lado sua tendência ao bizarro e ao escatológico para mergulhar em um universo ainda mais surreal e apavorante: a mente de um esquizofrênico. Graças ao roteiro inteligente e aos atores em momentos inspirados, criou um de seus melhores filmes.

terça-feira

GANGUES DE NOVA YORK

GANGUES DE NOVA YORK (Gangs of New York, 2002, Miramax, 167min) Direção: Martin Scorsese. Roteiro: Jay Cocks, Steven Zaillian, Kenneth Lonergan, estória de Jay Cocks. Fotografia: Michael Ballhaus. Montagem: Thelma Schoonmaker. Música: Howard Shore. Figurino: Sandy Powell. Direção de arte/cenários: Dante Ferreti/Francesca LoSchiavo. Produção executiva: Maurizio Grimaldi, Michael Hausman, Michael Ovitz, Bob Weinstein, Rick Yorn. Produção: Alberto Grimaldi, Harvey Weinstein. Elenco: Daniel Day-Lewis, Leonardo DiCaprio, Cameron Diaz, Liam Neeson, John C. Reilly, Jim Broadbent, Henry Thomas, Brendan Gleeson, Gary Lewis, Stephen Graham, Eddie Marsan, Cara Seymour. Estreia: 09/12/02

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Martin Scorsese), Ator (Daniel Day-Lewis), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Canção ("The hands that built America"), Som
Vencedor de 2 Golden Globes: Diretor (Martin Scorsese), Canção ("The hands that built America") 

Um dos projetos de estimação do cineasta Martin Scorsese, "Gangues de Nova York" começou a ser gerado ainda nos anos 70, quando o diretor ainda era uma jovem promessa, vindo do sucesso de crítica de seu "Taxi driver". Mais de duas décadas depois - e após uma sucessão de altos e baixos e uma bem-sucedida parceria artística com Robert DeNiro - parecia-lhe que enfim era chegada a hora de mostrar nas telas um pouco das origens da mais famosa cidade do mundo, com toda a sua violência sanguinária substituindo o glamour e o charme da metrópole tão querida por ele. Com base em uma estória do roteirista Jay Cocks desenvolvida por anos e anos, surgiu então um filme que, a despeito de todos os talentos envolvidos e das expectativas geradas por tanta espera, não atinge todo o seu potencial. Mesmo com um orçamento generoso de mais de 80 milhões de dólares, falta a ele uma alma e um foco narrativo mais atraente do que uma simples história de vingança tendo como pano de fundo as cruéis batalhas que pavimentaram o solo da Grande Maçã durante a Guerra de Secessão.

Obcecado pela história de Nova York desde que descobriu, no início de 1970, um livro escrito por Herbert Asbury, Scorsese dedicou tempo, paixão e energia a descobrir uma forma de contar cinematograficamente parte de uma longa e complicada história envolvendo os conflitos entre americanos protestantes e irlandeses católicos que encharcavam de sangue as calçadas da cidade com o objetivo de controle. Foi somente na década de 90 que surgiu a ideia de concentrar a trama em um personagem real - Bill "The Butcher" Poole - e, modificando alguns detalhes de sua biografia (mais significativamente a data de sua morte, ocorrida antes dos fatos mostrados no filme), envolvê-lo em uma história de vingança familiar. Tomava forma, assim, a estrutura final de uma obra complicada, cara e que se tornou um dos lançamentos mais ansiosamente aguardados de 2001 - e que, devido a constantes atrasos em seu cronograma de filmagens, só chegou às telas no final de 2002, dividindo a opinião do público, da crítica e até das cerimônias de premiação: indicado a dez Oscar, "Gangues de Nova York" testemunhou de mãos vazias a festa de "Chicago" e "O pianista", mesmo tendo sido agraciado pelos Golden Globes de melhor ator (Daniel Day-Lewis) e canção (a bela "The hands that built America", da banda irlandesa U2).


Interpretado com a dedicação habitual por Daniel Day-Lewis - em uma atuação que empresta um tom caricato a um personagem de nuances trágicas e épicas - Bill, o Açougueiro é o líder de uma das gangues que controlam um dos distritos de Nova York na metade do século XIX. Durante uma das sangrentas batalhas entre elas, ele não hesita em matar cruelmente um rival, o irlandês "Priest" Vallon (Liam Neeson), sob os olhos do filho deste, uma criança que, órfã e criada em um orfanato católico, cresce com o desejo de vingança como principal objetivo de vida. Dezesseis anos mais tarde, o menino, chamado Amsterdam (e na pele de Leonardo DiCaprio em sua primeira colaboração com Scorsese, de quem se tornaria parceiro artístico constante) volta às ruas de sua cidade e a encontra sob uma constante tensão racial e social, com os políticos tentando de qualquer maneira conquistar os votos dos imigrantes, que são tratados como seres insignificantes por gente com Bill. Em sua gana de vingar a morte do pai, Amsterdam se aproxima do temido líder e se torna seu homem de confiança - até ser traído inesperadamente e ser obrigado a enfrentar seu inimigo em plena Revolta do Alistamento (quando a comunidade pobre, inconformada com o alto custo da taxa que liberava os jovens do alistamento militar).

Tecnicamente impecável, com uma reconstituição de época brilhante - as filmagens aconteceram na Cinecitta, na Itália - e a direção sempre vigorosa e detalhista de Scorsese, "Gangues de Nova York"  é um superespetáculo visual, repleto de sequências criativas, fortes e marcantes, mas infelizmente derrapa nas suas boas intenções. O roteiro - co-escrito pelo oscarizado Steven Zaillian e por Kenneth Lonergan, conhecido por seus filmes independentes - falha em conectar seus protagonistas, negando ao público a chance de se deixar envolver pela vingança de Amsterdam ou compreender a contento todas as nuances da história da cidade. Até mesmo a inclusão de uma desnecessária personagem feminina, a punguista Jenny Everdeane (a sempre insossa Cameron Diaz, nome imposto pelos produtores para incrementar as chances comerciais do filme) soa como uma tentativa desastrada de aliviar a violência do enredo, com um romance também pouco convincente. Indeciso entre narrar batalhas sangrentas, um drama familiar ou uma história de amor, Scorsese acaba por ficar no meio-termo em todas as frentes, prejudicando tanto o ritmo quanto a profundidade daquela que poderia ser a sua obra-prima. Para isso colabora também a atuação de Leonardo DiCaprio - que no mesmo ano protagonizou o divertido "Prenda-me se for capaz", de Steven Spielberg: apesar de elogiado por boa parte da crítica, o jovem ator não consegue transmitir, em seu trabalho, todas as possibilidades de seu personagem.

No entanto, apesar dos pesares, "Gangues de Nova York" é um típico Martin Scorsese, o que faz dele programa obrigatório para qualquer cinéfilo. Mesmo longe de tudo que poderia ser - em parte porque o orçamento não comportou toda a grandeza do roteiro final - o filme tem qualidades em número mais do que suficiente para agradar a quem procura uma produção caprichada, com bons atores e comandada por um cineasta cuja paixão transpira em cada fotograma.

segunda-feira

COISAS BELAS E SUJAS

COISAS BELAS E SUJAS (Pretty dirty things, 2002, BBC Films, 97min) Direção: Stephen Frears. Roteiro: Steven Knight. Fotografia: Chris Menges. Montagem: Mick Audsley. Música: Nathan Larson. Figurino: Odile Dicks-Mireaux. Direção de arte/cenários: Hugo Luczyc-Wyhowski/Linda Wilson. Produção executiva: Julie Goldstein, Teresa Moneo, Allon Reich, Tracey Scoffield, Paul Smith, David M. Thompson. Produção: Robert Jones, Tracey Seaward. Elenco: Chiwetel Ejiofor, Audrey Tautou, Sergi Lopez, Sophie Okonedo, Benedict Wong, Zlatko Buric. Estreia: 05/09/02 (Festival de Veneza)

Indicado ao Oscar de Roteiro Original

Duas chagas da sociedade europeia estão retratadas em "Coisas belas e sujas", primeiro filme em língua inglesa da atriz Audrey Tautou, a eterna Amélie Poulain: a imigração ilegal e o mercado negro de órgãos. Com base em um roteiro esperto e enxuto que acabou sendo indicado ao Oscar mais de um ano depois de sua estreia no Festival de Veneza de 2002, o diretor inglês Stephen Frears - autor de obras tão diversas como "Ligações perigosas", "Os imorais", "Herói por acidente" e "O segredo de Mary Reilly" - construiu um filme instigante, austero e sensível que equilibra os elementos de um bom thriller com aspectos de denúncia social, além de uma comovente e discreta história de amor. Equilibrando sua história entre hotéis de luxo e as sarjetas do submundo ilícito dos estrangeiros que lutam por uma vida digna longe de seus países de origem, Frears conta com um fabuloso elenco internacional para dar vida a um conto muitas vezes cruel, mas dotado de uma ponta de esperança que o salva de tornar-se mais um petardo doloroso e cínico sobre as mazelas humanas. Para isso, nada colabora mais do que o rosto angelical de Tautou, que imprime delicadeza mesmo aos mais pútridos atos.

No entanto, apesar de ser o rosto de Tautou que enfeita o cartaz, o real protagonista de "Coisas belas e sujas" é Chiwetel Ejiofor - que alcançaria fama com sua indicação ao Oscar por "12 anos de escravidão", mais de uma década depois. Ele interpreta Okwe, um imigrante nigeriano que trabalha em Londres dirigindo um táxi durante o dia e como recepcionista de um hotel à noite. No meio-tempo ele dorme (ou tenta descansar, já que faz uso de ervas medicinais para manter-se acordado durante o horário comercial) no sofá do apartamento de uma colega, a turca Senay (Audrey Tautou), que sonha em viajar para Nova York mas precisa trabalhar sem visto tanto no hotel quanto em uma fábrica de roupas cujo dono a obriga a favores sexuais a despeito de sua virgindade. Senay é apaixonada por Okwe, que não percebe tal sentimento e esconde uma tragédia pessoal em seu passado - além do fato de ser formado em Medicina em seu país de origem. E é justamente esse detalhe profissional que irá empurrar o dedicado nigeriano em um pesadelo kafkiano: ao desentupir o vaso do banheiro de um dos quartos do hotel onde trabalha, ele encontra um coração humano. Intrigado com tal acontecimento bizarro - e com a indiferença com que tal é tratado por seu superior, Juan (Sergi Lopez) - o rapaz passa a investigar e descobre, para seu choque, um esquema de tráfico de órgãos do qual o próprio Juan faz parte.




Fotografado pelo veterano Chris Menges em tons pastel que reforçam o sentimento de claustrofobia, "Coisas belas e sujas" passa, com elegância, de um drama sobre os problemas dos imigrantes ilegais, sujeitos a humilhações e inseguranças constantes, a um suspense concebido com inteligência e altas doses de melancolia - um detalhe que o distancia de seus congêneres e o destaca como um dos melhores trabalhos da carreira de Frears. Substituindo o herói intocável e incorruptível por um ser humano passível de erros e dilemas éticos, o filme aproxima o espectador de seus personagens, se esgueirando por seus apartamentos minúsculos, seus subempregos, seus dramas pessoais e suas soluções frequentemente equivocadas sem fazer nenhum tipo de julgamento de juízo. Comovendo com a história de amor delicada entre Okwe e Senay - um romance casto, ingênuo e repleto de dores e decepções - e surpreendendo com os devios da trama de suspense - que envolve uma sequência perto do final de deixar qualquer um tenso na poltrona - o roteiro jamais escorrega na esquizofrenia, equilibrando com maestria os dois fios narrativos a fim de encerrá-los com coerência e delicadeza.

Intenso e bem dirigido, emocionante e interpretado com extrema força, "Coisas belas e sujas" é um filme subestimado ao extremo. Sua indicação ao Oscar - perdeu para o sensível "Encontros e desencontros", de Sofia Coppola - apenas destacou uma de suas inúmeras qualidades, mas a Academia errou em deixar de fora a direção precisa de Stephen Frears, a fotografia excelente de Menges, a edição impecável e a atuação de Chiwetel Ejiofor, que transmite com um único olhar uma variedade insana de sentimentos. Merece ser descoberto e aplaudido.

domingo

AMÉM

AMÉM (Amen., 2002, Canal +/K.G. Productions, 132min) Direção: Costa-Gavras. Roteiro: Costa-Gavras, Jean-Claude Grumberg, peça teatral "Del stellvertrer", de Rolf Hochhuth. Fotografia: Patrick Blossier. Montagem: Yannick Kergoat. Música: Armand Amar. Figurino: Edith Vesperini. Direção de arte/cenários: Ari Hantke/Carmen Pasula. Produção: Andrei Boncea, Michèle Ray-Gavras. Elenco: Ulrich Tukur, Mathieu Kassovitz, Ulrich Muhe, Michel Duchaussoay, Ion Caramitru, Marcel Iures. Estreia: 13/02/02 (Festival de Berlim)

Diretor de alguns dos mais contundentes exemplares do chamado "cinema político" - o que inclui o oscarizado "Z" e o aclamado "Missing, o desaparecido" - o grego Constantin Costa-Gavras foi o cineasta ideal para levar às telas a peça do dramaturgo alemão Rolf Hochhuth, lançada em 1963 já sob a aura da polêmica. Falando sobre um tema ainda fresco e desconfortável - como ainda hoje o é - "Amém" tratava da passividade da Igreja católica diante das atrocidades cometidas contra os judeus nos campos de concentração nazistas durante a II Guerra Mundial. Não foi surpresa, portanto, que o Vaticano tenha fechado suas portas para a realização do filme, que escancara sem pena nem dó os motivos egoístas e ditos diplomáticos da alta cúpula cristã no período em que Hitler esteve no comando alemão. Com uma narrativa direta e sem espaço para sentimentalismos, Costa-Gavras mergulha na consciência de um oficial da SS e no desespero de um jovem padre para contar à plateia uma história de horrores e indiferença, capaz de revoltar ao mais pacato dos espectadores.

A primeira sequência já é Costa-Gavras puro: durante um congresso da ONU em 1936, um jornalista entra sorrateiramente distribuindo panfletos e, antes de tirar a própria vida com um tiro no peito, alerta os presentes sobre os crimes cometidos contra o povo judeu pelo governo alemão. É o ponto de partida para uma trama centrada em dois personagens fortes e determinados o bastante para lutar contra o status quo, mesmo que isso faça deles dois proscritos em suas carreiras. O primeiro a ser apresentado ao público é Kurt Gerstein (Ulrich Tukur), cientista alemão recrutado pela SS como engenheiro sanitarista. À princípio pensando que seu trabalho é purificar a água consumida pelo exército alemão e depois criar um gás que permita exterminar qualquer tipo de animal pestilento dos campos de concentração, ele descobre, transtornado, que seu trabalho está sendo utilizado para matar milhares de judeus que o governo nazista insiste em afirmar que está apenas deslocando para outros países. Determinado a revelar ao mundo a criminosa farsa - por questões éticas e humanistas, já que foi criado como cristão - Gerstein tenta chamar para seu lado os intelectuais e religiosos amigos de sua família, mas percebe que está sendo tratado como traidor. Sua caminhada só encontra apoio em Riccardo Fontana (Mathieu Kassovitz, o galã de "O fabuloso destino de Amélie Poulain"), um padre com relações estreitas com o Vaticano - seu pai é amigo antigo do Papa Pio XII.


Com a entrada de Riccardo em cena, a ação se transfere dos escritórios da SS para os corredores luxuosos do Vaticano e afins. Ciente do genocídio cometido pela Alemanha, ele usa de seu poder em transitar pelos meandros do poder religioso para convencer a todos ao seu redor do tamanho do estrago, sendo sempre repelido, ignorado ou simplesmente ridicularizado. Percebendo chocado que a indiferença da Igreja tem a ver com seus próprios interesses econômicos e políticos, o jovem acaba virando as costas para os dogmas católicos e, munido apenas de sua crença na justiça e nas informações divulgadas a ele por Gerstein - que não hesita em oferecer-se como testemunha ocular caso seja necessário - deixa de lado a teoria e parte para a ação, arriscando a vida para impedir uma desgraça ainda maior junto ao povo judeu. É desnecessário dizer que embarca sozinho nessa perigosa missão.

Tratando o tema com sobriedade e firmeza, Costa-Gavras foge do didatismo e da mesmice dos filmes do gênero ao concentrar seu foco nos dois protagonistas, apenas ocasionalmente virando sua câmera para retratar os horrores dos campos de concentração, tantas vezes já vistos no cinema - é o caso da sufocante sequência em que Gerstein toma conhecimento do mal que sua ciência vem fazendo aos prisioneiros de guerra. Seu filme é feito de diálogos, palavras, sentimentos e frustração, em contraponto a obras que se dedicam a explorar o assunto com imagens brutais ou líricas. Tal opção o afasta dos filmes de guerra convencionais - a guerra é travada dentro da mente dos personagens e em cenários menos amplos do que campos de batalha ou de concentração - e o aproxima do espectador comum, que sente-se uma testemunha privilegiada de um combate histórico e poucas vezes discutido com tanta clareza e coragem. Sem medo de despertar discussões, "Amém" é importante e imprescindível, mesmo que não tenha o mesmo brilhantismo das melhores obras do diretor.

sábado

CÁLCULO MORTAL

CÁLCULO MORTAL (Murder by numbers, 2002, Warner Bros/Castle Rock Entertainment, 115min) Direção: Barbet Schroeder. Roteiro: Tony Gayton. Fotografia: Luciano Tovoli. Montagem: Lee Percy. Música: Clint Mansell. Figurino: Carol Oditz. Direção de arte/cenários: Stuart Wurtzel/Hilton Rosemarin. Produção executiva: Sandra Bullock, Jeffrey Stott. Produção: Richard Crystal, Susan Hoffman, Barbet Schroeder. Elenco: Sandra Bullock, Ben Chaplin, Ryan Gosling, Michael Pitt, Agnes Bruckner, Chris Penn. Estreia: 19/4/02

Se alguém estranhar a presença de Sandra Bullock no papel principal do suspense policial "Cálculo mortal" basta dar uma olhada nos créditos de abertura para descobrir que ela é também um dos produtores executivos do filme de Barbet Schroeder: somente assim dá pra entender porque a atriz - que até funciona em comédias românticas ou papéis mais leves mas é incapaz de convencer interpretando personagens dramáticos (apesar do Oscar inexplicável por "Um sonho possível" em 2010). Na pele da detetive Cassie Mayweather, uma mulher traumatizada por um trágico acontecimento no passado que tenta desvendar o assassinato aparentemente sem motivos de uma jovem encontrada morta à beira de um rio, Bullock mais uma vez apresenta seu arsenal de caras, bocas e trejeitos, enfraquecendo uma história já banhada em clichês. Seu trabalho pouco inspirado só não consegue diluir totalmente o suspense da trama porque Schroeder consegue tirar leite de pedra e porque um dos atores jovens do elenco, Ryan Gosling, já demonstra, em um de seus primeiros filmes, que seu talento em roubar a cena.

Anos antes de tornar-se um galã requisitado e um ator dos mais elogiados de sua geração, Gosling chama a atenção pela intensidade que empresta ao jovem estudante Richard Haywood, cujo carisma petulante (e os pais milionários) sempre ajudaram a conquistar qualquer coisa. Por puro tédio e para provar a teoria de que o crime perfeito existe, ele se une a um colega de escola, Justin Pendleton (Michael Pitt, sempre estranho), um nerd desajustado e tímido que vê nele um ídolo e um modelo a ser seguido. Juntos, eles tramam a morte de uma desconhecida, planejam com antecedência cada passo e, como chave de ouro, deixam junto ao corpo traços que levam os detetives ao faxineiro da escola, Ray Feathers (Chris Penn), previamente condenado por agressão e tráfico de drogas. Quem não compra a solução do caso é Cassy, uma policial dedicada que desconfia quase obsessivamente de Richard e desafia seus superiores e seu parceiro, Sam Kennedy (Ben Chaplin), na tentativa desesperada de provar seu ponto de vista.


O ponto de partida de "Cálculo mortal" é dos melhores e mais inspiradores: dois jovens tentando praticar o crime perfeito - algo que lembra bastante "Festim diabólico", de Alfred Hitchcock, inclusive com alguns tons homoeróticos não explorados por Schroeder. O problema é que o roteiro acaba se desviando de sua premissa inicial sempre que passa a explorar os dramas pessoais de Cassie, fantasmas que não necessariamente tem conexão com a trama e que servem apenas para frear o ritmo da narrativa e dar à Sandra Bullock a chance de tentar mostrar-se capaz de segurar um papel com consistência dramática - o que ela não consegue, a não ser que se considere uma boa interpretação um trabalho recheado de esgares nitidamente forçados e gemidos exagerados para demonstrar medo e fragilidade (coisas que ela fez também em "Gravidade" e pelo qual conseguiu uma nova indicação ao Oscar). Sempre que a trama muda de foco e sai da investigação do crime para explorar os dramas pessoais de Cassie, o filme cai perigosamente no tédio e no lugar-comum, que culmina com a protagonista dormindo com o colega de trabalho apenas para mostrar que é descolada e independente. Mais chavão impossível. Interpretado por Sandra Bullock, então, chega às raias do insuportável.

Felizmente há mais elementos em "Cálculo mortal" do que sua mocinha sonolenta. O plano criado pelos dois rapazes é empolgante e a relação entre eles, ainda que pouco aprofundada pelo roteiro, é muito mais interessante do que o drama da policial que os investiga. Além do mais, Schroeder - diretor de filmes de prestígio como "O reverso da fortuna" e de sucessos de bilheteria como "Mulher solteira procura..." - é um cineasta inteligente, que tenta, mesmo quando o roteiro não lhe permite, contar suas histórias de forma a manter o interesse da plateia até o último minuto. Aqui, há inclusive uma reviravolta final, que, mesmo não sendo genial, consegue surpreender e livrar o espectador da sensação de tempo perdido. Pode não ser inesquecível, mas é um filme policial decente e que cumpre o que promete. Apesar de Sandra Bullock.

sexta-feira

HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES

HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES (Houve uma vez dois verões, 2002, Casa de Cinema de Porto Alegre, 75min) Direção e roteiro: Jorge Furtado. Fotografia: Alex Sernambi. Montagem: Giba Assis Brasil. Música: Leo Henkin. Figurino: Rosângela Cortinhas. Direção de arte/cenários: Ana Luiza Azevedo/Fiapo Barth. Produção: Nora Goulart, Luciana Tomasi. Elenco: André Arteche, Ana Maria Mainieri, Pedro Furtado, Júlia Barth, Marcelo Aquino, Jananína Kremer Motta. Estreia: 2002

Bem-sucedido roteirista de televisão e internacionalmente premiado com seu curta-metragem "Ilha das flores", o gaúcho Jorge Furtado fez a escolha certa quando resolveu estrear no comando de um longa: deixando de lado toda e qualquer pretensão, ele escolheu um gênero querido pelo público (a comédia romântica adolescente), abdicou de astros da telinha carregados de vícios artísticos e resolveu cantar seu quintal - mais especificamente, o litoral do Rio Grande do Sul e sua capital, Porto Alegre - na história de idas e vindas de um amor juvenil embalada por uma trilha sonora vibrante (também recheada de músicos do sul) e banhada em um humor quase ingênuo. "Houve uma vez dois verões" - cujo sabor de nostalgia já começa no título que homenageia o clássico "O verão de 42", de Robert Mulligan - é um trunfo de simplicidade e delicadeza, capaz de agradar sua plateia sem fazer muito esforço.

Tudo começa no final de um verão em uma praia do litoral gaúcho, quando o adolescente Chico (André Arteche, ótimo), virgem, tímido e romântico, conhece a extrovertida e sedutora Roza (Ana Maria Mainieri) em um fliperama. De um flerte desajeitado surge sua primeira experiência sexual, mas a menina desaparece assim como surgiu, deixando-o sem uma única pista sobre sua localização. Alguns meses mais tarde, já em Porto Alegre, o rapaz é procurado por sua ex-futura namorada, que lhe revela estar grávida e pede dinheiro para realizar um aborto. Mesmo triste com a situação, o rapaz lhe dá a grana, apenas para descobrir, logo em seguida, que ela desapareceu novamente. Quando descobre, junto ao amigo Juca (Pedro Furtado, filho do diretor), que ela deu o mesmo golpe em vários outros homens, Chico decide procurá-la novamente para tirar satisfações. É aí que tem início uma história repleta de idas e vindas, em que seu amor será testado diversas vezes.


Enxuto e de narrativa ágil - pouco mais de 75 minutos de projeção - "Houve uma vez dois verões" usa e abusa da maior qualidade do Jorge Furtado roteirista (diálogos afiados e inteligentes, com um senso de humor de fácil assimilação mas nunca simplório) e demonstra a segurança do Jorge Furtado diretor. Tirando interpretações espontâneas e simpáticas do elenco jovem - em especial do iniciante André Arteche, que transmite sem dificuldade toda gama de sentimentos de seu personagem, demonstrando pleno domínio de seu ofício - o cineasta faz um pequeno inventário de gírias, sotaques e costumes de seu estado, registrando com sua câmera paisagens conhecidas dos gaúchos e apresentando-as a uma plateia mais ampla, com carinho e sensibilidade. De comunicação direta com seu público, Furtado faz rir de situações cotidianas e banais, ressaltando sempre o ridículo de cada momento sem tirar-lhe a essência humana: até mesmo personagens secundários são tratados com respeito por seu roteiro, uma espécie de treino para seu filme posterior, o ótimo "O homem que copiava", bem mais ambicioso e igualmente bem-sucedido em seus objetivos de entreter sem compromisso.

Com uma trilha sonora que mistura rock, pop, regravações de clássicos americanos e que une músicos gaúchos e de projeção nacional (Pato Fu e Cássia Eller em sua última gravação, uma releitura de "Nasci para chorar") para acompanhar as aventuras e desventuras românticas de Chico e Roza, "Houve uma vez dois verões" é uma espécie de excelente ensaio para Jorge Furtado antes de afileirar-se entre os melhores cineastas brasileiros de sua geração. Engraçado, leve e modesto, é também uma comédia de deixar qualquer um com um sorriso estampado nos lábios. Seu único defeito é ser tão curto.

quinta-feira

O PIANISTA

O PIANISTA (The pianist, 2002, R.P. Productions/Heritage Films, 150min) Direção: Roman Polanski. Roteiro: Ronald Harwood, livro de Wladyslaw Szpilman. Fotografia: Pawel Edelman. Montagem: Hervé de Luze. Música: Wojciech Kilar. Figurino: Anna Sheppard. Direção de arte/cenários: Allan Starski/Wieslawa Chojkowska, Gabrielle Wolff. Produção executiva: Timothy Burrill, Henning Molfenter, Lew Rywin. Produção: Robert Benmussa, Roman Polanski, Alain Sarde. Elenco: Adrien Brody, Thomas Kretschmann, Emilia Fox, Michal Zebrowski, Ed Stoppard, Maureen Lipman. Estreia: 24/5/02 (Festival de Cannes)

7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Roman Polanski), Ator (Adrien Brody), Roteiro Adaptado, Fotografia, Montagem, Figurino
Vencedor de 3 Oscar: Diretor (Roman Polanski), Ator (Adrien Brody), Roteiro Adaptado
Palma de Ouro (Melhor Diretor) no Festival de Cannes: Roman Polanski

Diretor de obras aclamadas e queridas pela crítica e pelo público, como "O bebê de Rosemary" (68) e "Chinatown" (74), o polonês Roman Polanski - cuja vida pessoal é tão ou mais trágica e atribulada do que as tramas de seus trabalhos para as telas - declarou, em um documentário de 2011 chamado "Roman Polanski: a film memoir" que, dentre todos os seus filmes, o seu preferido é "O pianista", que ele lançou no Festival de Cannes de 2002 e que lhe rendeu a Palma de Ouro e o Oscar de melhor diretor. Não é para menos: assim como "A lista de Schindler" serviu para que Steven Spielberg fizesse as pazes com suas origens judaicas - e com a Academia - a história real do músico Wladyslaw Szpilman foi a desculpa perfeita para que Polanski (que perdeu a mãe em um campo de concentração durante a II Guerra Mundial) também voltasse os olhos para um período negro de sua vida como forma de catarse. O resultado é, em contraste com a força sentimental do filme de Spielberg, um retrato seco e cruel ao estilo pouco lírico do diretor que quase acabou com a festa de "Chicago" na cerimônia do Oscar de 2003 - além de Polanski, foram premiados o roteiro de Ronald Harwood e a atuação minimalista de Adrien Brody, que, aos 29 anos, tornou-se o mais jovem premiado da categoria.

Desde a primeira sequência - em que Szpilman mantém-se concentrado em terminar a peça musical que está tocando mesmo com a explosão de bombas que ameaçam o prédio da emissora de rádio onde trabalha, na Polônia de 1939 - fica claro que a intenção de Brody e Polanski é enfatizar a paixão do protagonista por sua arte, independente das circunstâncias nefastas que o cercam. Assim como todos os judeus de sua Varsóvia - incluindo sua família - ele se vê repentinamente privado de suas propriedades, de sua honra e de seus direitos de cidadão. Conforme a situação vai gradativamente piorando, ele vê famílias sendo destruídas, pessoas sendo assassinadas cruelmente nas ruas e, chocado, presencia a transferência de centenas de conhecidos para campos de concentração. Por obra do acaso - na figura de um amigo que o livra de tal destino - ele arruma emprego como pianista de um restaurante, mas logo é obrigado a levar uma vida clandestina, fugindo e se escondendo da impiedosa polícia nazista enquanto testemunha com cada vez maior pavor o aniquilamento de sua antiga vida.


Fotografado em tons cinzentos que contribuem para sublinhar o tom pessimista e melancólico da história, "O pianista" abdica das cenas lacrimosas para mostrar com austeridade os horrores da guerra sob o ponto de vista de uma de suas vítimas. Com seu olhar perdido e o ar desesperado, Szpilman atravessa a calamitosa - e longa - fase de sua vida não como um herói, mas como uma pessoa comum, um homem incapaz de fugir das armadilhas que lhe surgem pela frente sem sofrer na alma cada perda e cada angústia. A interpretação de Brody - frequentemente silenciosa e intimista - encaixa com perfeição na quase passividade do personagem, que justamente por não lutar contra a tempestade que cai em seus ombros chega quase a enervar a plateia. É mérito dele que haja o envolvimento emocional com a forma quase documental com que o roteiro é tratado - inclusive Polanski mesmo incluiu nos relatos de Szpilman suas próprias recordações de acontecimentos que presenciou na infância, o que aprofunda ainda mais a experiência dolorosa que é assistir-se ao filme.

"O pianista" é um filme forte, intenso e cruel, como toda a obra de Roman Polanski. Porém, é ainda mais excruciante por tratar de maneira realista e desprovida de sentimentalismo um período de trevas e dor que dizimou a vida e a esperança de milhares de pessoas. Talvez seja mal-entendido por aqueles que esperavam um novo "A lista de Schindler", mas é, ao lado dele, um dos mais poderosos retratos do holocausto e dos crimes da II Guerra Mundial, visto por quem estava dentro do furacão. De inegável impacto, não surpreende ser o preferido de seu autor.

quarta-feira

INSÔNIA

INSÔNIA (Inmsonia, 2002, Alcon Entertainment, 118min) Direção: Christopher Nolan. Roteiro: Hilary Seitz, roteiro original de Nikolaj Frobenius, Erik Skjoldbjaerg. Fotografia: Wally Pfister. Montagem: Dody Dorn. Música: David Julyan. Figurino: Tish Monaghan. Direção de arte/cenários: Nathan Crowley/Peter Lando. Produção executiva: George Clooney, Kim Roth, Charles J.D. Schlissel, Steven Soderbergh, Tony Thomas. Produção: Broderick Johnson, Paul Junger Witt, Andrew A. Kosove, Edward L. McDonnell. Elenco: Al Pacino, Robin Williams, Hilary Swank, Martin Donovan, Maura Tierney, Nicky Katt, Paul Dooley. Estreia: 03/5/02 (Festival de Tribeca)

Christopher Nolan ainda não era o cineasta reconhecido por ter transformado Batman em uma das mais lucrativas séries da história do cinema quando assumiu a direção de "Insônia", refilmagem de um suspense sueco que reunia três atores vencedores do Oscar - Al Pacino, Hilary Swank e Robin Williams, este último exercitando sua escolha por papéis de vilão que direcionou sua carreira depois de alguns fracassos de bilheteria. A escolha de Nolan para a direção, no entanto, não foi gratuita: quando entrou no projeto, ele já havia assinado um filme policial que deixou de queixo caído a crítica e o público, além de ter concorrido ao Oscar de roteiro original, o fabuloso "Amnésia". Talentoso, criativo e ousado, o cineasta transformou uma trama policial comum em um instigante estudo sobre culpa, obsessão e ética que, mesmo sem ter sido um estrondo de bilheteria mostrou que o diretor tinha a manha de conseguir injetar qualidade e inteligência a um entretenimento popular - o que se comprovaria com os filmes do homem-morcego e seus demais trabalhos.

Para adaptar a trama a uma lógica convincente, "Insônia" teve o cenário de seu original - a Suécia - transferido para uma pequena cidade do Alasca chamada Nightmute. É para lá que se dirigem dois policiais de Los Angeles, Will Dormer (Al Pacino, fenomenal) e Hap Eckhart (Martin Donovan), com o objetivo de investigar o assassinato de uma adolescente local. Entre interrogatórios com os colegas e familiares da vítima, Dormer e Hap contam com a ajuda de dois colegas locais, a dedicada Ellie Burr (Hilary Swank) e o caipira Fred Duggar (Nicky Katt), que ignoram o fato de que os dois forasteiros estão passando por um turbilhão profissional: Hap está em vias de revelar a seus superiores irregularidades cometidas por seu parceiro em um caso antigo e tal possibilidade está deixando sua amizade em uma perigosa corda-bamba. Quando, durante a perseguição a um dos suspeitos do crime Dormer mata o colega com um tiro, ele entra em uma séria crise de insônia, agravada pelo fato de a cidade não ter noites. Para piorar a situação, ele passa a ser chantageado pelo criminoso, o escritor de livros de suspense Walter Finch (Robin Williams), que testemunhou o acontecido e ameaça denunciar-lhe por homicídio.


Um suspense policial bem construído e centrado em personagens fortes mais do que em uma trama rocambolesca, "Insônia" mergulha o espectador em um universo claustrofóbico de mentiras, meias-verdades e tênues divisões entre o bem e o mal, sublinhadas por diálogos de substância e uma direção firme, que nunca resvala para o clichê. Concentrando seu foco nas relações entre Dormer e Finch - e sua possível conexão forjada através das mortes a que estão ligados - e entre Dormer e a idealista Ellie Burr - que vê nele um exemplo a ser seguido até que passa a desconfiar que seu herói tem tantos defeitos quanto qualidades e se vê diante de um dilema ético e moral - o roteiro de Hilary Seitz (que sofreu alterações feitas pelo próprio Nolan) desvia-se com segurança da linha de investigação criminal que lhe jogaria fatalmente na vala das produções banais do gênero para buscar mais consistência dramática - sem nunca deixar de lado, porém, o tom de tensão necessário para manter o espectador grudado na poltrona. Ao mesmo tempo em que acompanha o trabalho policial dos personagens, o público é brindado com uma história séria e intensa a respeito dos meandros da lei e de como é flexível o limite entre o certo e o errado quando o assunto é a violência.

E para sorte de Nolan o elenco responde à altura do roteiro, com interpretações que dão o peso exato à cada diálogo e à cada cena. Se Hilary Swank pouco tem a fazer com sua personagem até o terço final, quando torna-se peça fundamental para o desfecho, Robin Williams e Al Pacino - especialmente o último - dão um show à parte, elevando o nível do filme bem acima da média do gênero. A conversa entre policial e criminoso em um barco, por exemplo, é hipnótica e é um exemplo perfeito da química espetacular entre os dois grandes atores em um ótimo momento de suas carreiras, assim como a ótima sequência em que um devastado Dormer confessa à gerente do hotel onde está hospedado (e tentando dormir há dias, sem sucesso) os fatos trágicos que levaram à morte de seu parceiro. É drama de primeira, unido a uma história policial que não subestima a inteligência da plateia. Mesmo sem o brilhantismo dos filmes posteriores de Nolan, é um passatempo de primeira categoria.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...