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IMPÉRIO DOS SONHOS

IMPÉRIO DOS SONHOS (Inland Empire, 2006, StudioCanal, 180min) Direção e roteiro: David Lynch. Fotografia: David Lynch. Montagem: David Lynch. Figurino: Karen Baird. Direção de arte/cenários: Christina Wilson/Melanie Rein. Produção executiva: Keith Kjarval, Marek Zydowicz. Produção: David Lynch, Mary Sweeney. Elenco: Laura Dern, Jeremy Irons, Justin Theroux, Grace Zabriskie, Harry Dean Stanton, Diane Ladd, William H. Macy, Julia Ormond, Mary Steenburgen, Nastassja Kinski, Laura Harring. Estreia: 06/9/06 (Festival de Veneza)

Um belo dia, a atriz Laura Dern recebeu um telefonema do diretor David Lynch - com quem já havia trabalhado nos filmes "Veludo azul" e "Coração selvagem" - e ouviu dele uma proposta tão estranha quanto irresistível: "Você quer experimentar?", perguntava a voz de um dos cineastas de maior prestígio do cinema americano independente. Intrigada e disposta a mergulhar novamente no universo onírico do criador de Laura Palmer, Dern topou a brincadeira. Surgia assim o mais hermético, bizarro e assustador de Lynch, "Império dos sonhos". Quem considerava sua obra fascinante, envolvente e poética a seu modo particular ganhou mais uma obra-prima. Aqueles que o rechaçavam como um diretor capaz de construir climas e imagens instigantes mas vazias de conteúdo tiveram mais munição. Mas o fato é que seu filme - o último até agora - parece ser tese final de décadas de estudo sobre a natureza complexa e muitas vezes maligna do ser humano. Você pode até não entender absolutamente nada do filme - assim como a própria Dern e seu colega de elenco Justin Theroux - mas é impossível ficar incólume à toda a carga de angústia, tensão e excitação intelectual que ele transmite a cada cena.

Quem começar a assistir a "Império dos sonhos" em busca de um filme com começo, meio e fim lógicos e bem definidos certamente irá decepcionar-se. Assim como "A estrada perdida" (99) e "Cidade dos sonhos" (02), seu filme se presta a inúmeras interpretações - e todas elas certamente estarão corretas, uma vez que o próprio David Lynch não faz a menor questão de esclarecer totalmente a trama, borrando deliberadamente as fronteiras entre o real e o imaginário, o passado e o presente, o palpável e o onírico. Contando com uma atuação assombrosa de Laura Dern, o cineasta mistura a uma história, já intrincada por natureza, imagens do mais puro nonsense - uma família de coelhos comporta-se como seres humanos em uma sitcom, por exemplo - e sequências de dar orgulho a qualquer discípulo de Jung. Usando e abusando de lentes grande-angulares, distorções de imagem e ruídos perturbadores, ele arquiteta um gigantesco painel de neuroses, culpas e violência que joga as pistas no colo do espectador, desafiando-o a montar um quebra-cabeças que talvez não se utilize de todas as peças - ao menos da maneira convencional.


A história - ou pelo menos o fio narrativo que dá o empurrão inicial - começa quando a atriz Nikki Grace (vivida por Laura Dern em estado de graça) aceita o papel principal de um filme romântico que está prestes a ser rodado pelo diretor Kingsley Stewart (Jeremy Irons). Antes do começo das filmagens, ela é procurada por uma nova vizinha (Gracie Zabriskie, de "Twin Peaks"), que a adverte em relação ao novo papel e, através de códigos, a alerta a respeito das consequências que a decisão de realizá-lo pode trazer. Ignorando os avisos, Nikki se envolve de cabeça no projeto e acaba por se apaixonar por seu colega de cena, o ator Devon Berk (Justin Theroux, o sr. Jennifer Aniston) - o que espelha a trama do filme que estão fazendo, na verdade o remake de um original que nunca chegou a ser finalizado porque seu casal de protagonistas morreu assassinado. Tal descoberta afunda Nikki ainda mais em um estado em que ela passa a confundir a realidade com a ficção.

Em seu terço inicial, "Império dos sonhos" até consegue enganar o público, com uma narrativa onde expõe alguns dos elementos com os quais irá jogar mais adiante. Não demora muito, porém, para que as pistas comecem a se acumular sem explicações plausíveis, o que transmite a exata sensação de desespero de sua protagonista, perdida em um mundo sem entradas e saídas facilmente definíveis. Na desordem organizada de Lynch frases são repetidas em momentos diametralmente opostos, situações aparentemente contraditórias completam uma a outra, personagens de épocas e mundos diferentes convivem pacificamente e atores consagrados fazem pontas quase imperceptíveis (caso de Diane Ladd, William H. Macy e Nastassja Kinski). No mundo feérico do diretor, a lógica como a conhecemos no dia-a-dia não se aplica. Tal característica - que a tantos confunde e afasta - é uma qualidade das maiores em um cinema cada vez mais estéril como o de Hollywood. Só isso já faz de "Império dos sonhos" um programa imperdível.

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