terça-feira

RELATOS SELVAGENS

RELATOS SELVAGENS (Relatos salvajes, 2014, Corner Producciones/El Deseo, 122min) Direção e roteiro: Damián Zsifrón. Fotografia: Javier Julia. Montagem: Pablo Barbieri Carrera, Damián Szifrón. Música: Gustavo Santaolalla. Figurino: Ruth Fischerman. Direção de arte: María Clara Notari. Produção executiva: Leticia Cristi, Pola Zito. Produção: Agustín Almodóvar, Pedro Almodóvar, Esther García, Matías Mosteirín, Hugo Sigman. Elenco: Ricardo Darín, Dario Grandinetti, Leonardo Sbaraglia, María Marull, Rita Cortese, Julieta Zylberberg, César Bordon, Walter Donado, Nancy Dupláa, Oscar Martínez, María Onetto, Osmar Nuñez, Germán de Silva, Erica Rivas, Diego Gentile. Estreia: 17/5/14 (Festival de Cannes)

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Merecidamente indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro - que perdeu para o italiano "A grande beleza", de Paolo Sorrentino - o argentino "Relatos selvagens" mostra mais uma vez a grande fase do cinema do país, que em 2010 levou uma estatueta da Academia pelo fabuloso "O segredo dos seus olhos" - que passou a perna em filmes bem mais festejados em festivais internacionais, como "A fita branca", de Michael Haneke, e "O profeta", de Jacques Audiard. Produzido pela El Deseo de Pedro Almodóvar, o filme de Damián Zsifrón até lembra um pouco as características do cineasta espanhol mais conhecido da atualidade - humor negro, personagens femininas fortes, certa dose de surrealismo - mas tem personalidade própria e um senso de crítica social mais aprofundado. Uma reunião de seis pequenos curtas (de gêneros e tons diferenciados), "Relatos selvagens" tem ainda a seu favor o fato de ter realizado um milagre quando se trata de filmes episódicos: mantém uma qualidade rara em todos os seus segmentos, prendendo a atenção do público do primeiro ao último minuto sem apelar para artifícios baratos ou suspenses óbvios.

A primeira história, "Pasternak", já dá uma mostra ao espectador do que ele pode esperar pelas próximas duas horas: em um voo comercial aparentemente normal, a modelo Isabel (María Marullo) conhece o professor de música Salgado (Darío Grandinetti, de "Fale com ela") e, depois de alguns minutos de conversa, descobre que entre eles há um conhecido em comum - um ex-namorado dela que teve a carreira destruída por uma crítica dele. Aos poucos, outros passageiros também manifestam conhecer o tal rapaz, uma coincidência que terá um final inusitado e surpreendente, recheado com um tom de "Além da imaginação". O segundo conto, "As ratazanas", mostra um pequeno restaurante de beira de estrada que é visitado por um arrogante candidato a prefeito (César Bordón) que é reconhecido pela garçonete Moza (Julieta Zylberberg) como o homem que destruiu sua família. Incentivada pela velha cozinheira do lugar (Rita Cortese), a jovem considera a hipótese de matá-lo com veneno para ratos - até que um novo cliente chega, fazendo-a questionar sua missão. É uma trama que aposta na crítica social e no suspense, com um final que dosa violência e realismo. O relato seguinte, "O mais forte", lembra o clássico "Encurralado", de Steven Spielberg, ao contrapor, em uma estrada, dois homens dispostos a tudo para provar sua superioridade em relação ao outro a partir de uma banal discussão de trânsito. Leonardo Sbaraglia (de "Plata quemada") vive Diego, que com seu carro último modelo, ultrapassa o veículo pouco luxuoso de Mario (Walter Donado) e o humilha, para logo em seguida, ver-se à sua mercê violenta e pouco afável. É um episódio tenso e angustiante, valorizado pelo trabalho de seus dois atores e com um final de extrema ironia.


Em seguida, surge o grande astro do cinema argentino, Ricardo Darín, com seu "Bombinhas", talvez o mais contundente dos segmentos em relação à burocracia da máquina sócio-política do país. Darín interpreta Simón, um engenheiro de demolições que, ao ir buscar o bolo de aniversário da filha pequena, vê seu carro ser guinchado por estar estacionado em local proibido. Revoltado com o fato do aviso não estar visível à população, ele entra em uma campanha pessoal para evitar a multa e exigir um pedido de desculpas da Prefeitura. Sua via-sacra acabará por bagunçar sua vida familiar e profissional, até que ele resolve vingar-se à sua maneira - e é impossível para qualquer público não identificar-se com seu personagem, patético em sua luta pelos direitos do cidadão. A penúltima história, "A proposta", é a mais séria e desprovida de humor dentre as seis criadas para o filme: para evitar a prisão do filho adolescente que atropelou e matou uma mulher grávida sem prestar ajuda, o empresário Maurício Pereira (Oscar Martínez) propõe, com a ajuda de seu advogado (Osmar Nuñez), que seu caseiro, José (Germán de Silva), assuma a autoria do crime, oferecendo a ele 500 mil dólares em troca das consequências. O humilde empregado aceita a ideia, mas a ganância do advogado e do detetive encarregado do caso tornam as coisas cada vez mais complicadas - e Maurício se vê repentinamente preso à corrupção proposta por ele mesmo. E, para fechar o filme com chave de ouro, Zsifrón escolheu o delicioso "Até que a morte os separe", um conto repleto de todos os elementos possíveis e imagináveis para um quadro de poucos minutos: humor, drama, suspense, uma certa violência e até romance. Em plena festa de seu casamento com o galante Ariel (Diego Gentile), a jovem Romina (Erica Rivas) descobre que seu novo marido tem um caso com uma colega de trabalho que está entre as convidadas. Desesperada, ela não demora a tramar uma vingança imediata - que inclui sexo com um dos cozinheiros da recepção e uma série de escândalos que faz de sua festa uma montanha-russa imprevisível.

Contando cada uma de suas histórias com ritmo e visual próprios, Damián Zsifrón mostra pleno domínio de sua narrativa, com tramas dotadas de uma precisão cirúrgica na cadência e no tom. Fazendo rir pela ironia e chocando pelo realismo prosaico de suas situações, o roteiro do cineasta propõe ao espectador um jogo de identificação que o torna irresistivelmente familiar ao mesmo tempo em que se estabelece como ficção ao ver todos os acontecimentos narrados através de uma lente de aumento que lhes enfatiza o ridículo e o senso de humanidade de cada um dos personagens. Ao fazer de cada um de seus protagonistas seres dotados de defeitos e qualidades, Zsifrón os aproxima com maestria de qualquer plateia - que acaba por abraçá-los, criticá-los ou perdoá-los justamente devido à tal identificação. "Relatos selvagens" é um grande filme, que merece o sucesso que fez. E mais uma vez a Argentina mostra que em cinema, muitas vezes menos é realmente mais.

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