segunda-feira

GRANDES OLHOS

GRANDES OLHOS (Big eyes, 2014, The Weinstein Pictures/Tim Burton Productions, 106min) Direção: Tim Burton. Roteiro: Larry Alexander, Scott Karaszewski. Fotografia: Bruno Delbonnel. Montagem: JC Bond. Música: Danny Elfman. Figurino: Colleen Atwood. Direção de arte/cenários: Rick Heinrichs/Craig Lewis. Produção executiva: Katterli Frauenfelder, Derek Frey, Jamie Patricof, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Scott Alexander, Tim Burton, Larry Karaszewski, Lynette Howell. Elenco: Amy Adams, Christoph Waltz, Danny Huston, Jason Schwartzman, Terence Stamp, Jon Polito. Estreia: 13/11/14

Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz Comédia/Musical (Amy Adams)
O diretor Tim Burton tem, aparentemente, algumas obsessões que fazem de seu cinema algo único dentro de uma indústria cada vez menos afeita a riscos financeiros desnecessários. Sua filmografia, coerente e por vezes quase previsível, começou a conquistar fãs com o humor negro de “Os fantasmas se divertem” (88) – a história de um casal de ectoplasmas tentando livrar-se dos novos proprietários de sua casa recém-comprada – e atingiu o ápice com a sua visão sombria pero no mucho do homem-morcego em “Batman” (89) e “Batman, o retorno” (92). Depois disso, com o bolso cheio de dólares e a liberdade artística que somente o dinheiro pode comprar em Hollywood, começou uma carreira repleta de altos e baixos, onde sucessos de crítica ignorados pelo público – “Ed Wood” (94) – e êxitos comerciais massacrados pela imprensa – “Alice no País das Maravilhas” (10) – tinham em comum apenas sua predileção por personagens exóticos e pelo visual criativo (além da participação frequente de seus parceiros habituais Johnny Depp e Helena Bonham Carter). O fim do casamento com Carter e o fracasso de seu “Sombras da noite” (12), porém, o empurraram em direção a uma obra que, a rigor, difere muito de sua filmografia. Baseado em fatos reais e isento dos excessos que frequentemente eclipsavam outros aspectos de seus filmes, “Olhos grandes” é um Tim Burton quase atípico – algo assim como o foram “História real” na carreira de David Lynch e “Kundun” na trajetória de Martin Scorsese.
Dialogando muito mais com a melancolia carinhosa de “Ed Wood” – sintomaticamente escrito pelos mesmos Larry Alexander e Scott Karaszewski – do que com a histeria quase infantil de “A fantástica fábrica de chocolates” (05), “Olhos grandes” revela em Burton um cineasta plenamente capaz de extrair emoção e interesse de histórias comuns, protagonizada por gente de carne e osso cujas preocupações não são evitar invasões alienígenas – como no horroroso “Marte ataca” (96) – ou vingar-se sanguinariamente dos algozes de seus familiares – caso de “Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da Rua Fleet” (08) – mas simplesmente sobreviver em um mundo tão glamouroso quanto cruel: o das artes plásticas. Visualmente o mais sutil de seus filmes, “Olhos grandes” concentra sua atenção basicamente na história de Margaret Keane, a autora de uma série de quadros que, sempre apresentando crianças com olhos tristes e desproporcionalmente grandes, tornou-se coqueluche nos EUA dos anos 60. Sem recorrer a fantásticas reconstituições de época e/ou criar mundos imaginários – artifícios que fizeram com que “A lenda do Cavaleiro Sem Cabeça”, “Sweeney Todd” e “Alice no País das Maravilhas” fossem premiados com o Oscar de melhor direção de arte – Burton apresenta ao público um filme simples e encantador.



Interpretada por uma sensacional Amy Adams – vencedora do Golden Globe e injustamente esnobada pela Academia – a protagonista Margaret é introduzida ao público em 1958, quando, demonstrando uma coragem admirável para a época, abandona o marido abusivo e parte com a filha pequena para São Francisco, disposta a ganhar a vida sem depender da bondade alheia. Ao salário ganho em uma fábrica de móveis ela tenta adicionar uma grana extra pintando retratos de eventuais clientes em uma feira de rua – já imprimindo nas telas a sua assinatura pessoal. É nessa feira que ela trava conhecimento com Walter Keane (Christoph Waltz), também pintor e que, depois de uma temporada em Paris, usa suas memórias afetivas como temática de sua obra. Em pouco tempo os dois acabam se casando – como forma de proteger a guarda da menina, ameaçada pelo ex-marido – e não demora muito para que Keane comece a perceber que o trabalho de sua mulher chama muito mais a atenção do que o seu. Astuciosamente – e com a ajuda do jornalista Dick Nolan (Danny Huston), que narra a história em off – ele toma para si a autoria dos quadros e passa a administrar o êxito financeiro que vem deles. Dono de uma ambição tão grande quanto seu mau-caráter e seu senso de marketing pessoal, o medíocre Keane se torna um sucesso comercial incontestável: ainda que rechaçados pela crítica séria, representada pelo inclemente John Canaday (Terence Stamp), os quadros de Keane (na verdade a incansável e inconsolável Margaret) são cobiçados até por gente influente como as atrizes Natalie Wood e Joan Crawford e o empresário italiano Dino Olivetti.
Quando Margaret resolve dar um basta na farsa – que a impediu por anos de obter seu próprio lugar ao sol mesmo fugindo de seu estilo clássico – “Olhos grandes” muda de registro. O tom quase ingênuo mostrado até então dá lugar a um viés mais sombrio, transformando definitivamente Walter Keane no vilão cuja maldade se disfarçava através de um verniz de simpatia e sorrisos constantes. Um gigantesco painel oferecido à Unicef serve como pomo da discórdia e, mais uma vez fugitiva de um casamento fracassado, a protagonista põe as cartas na mesa, revelando as mentiras contadas ao povo americano por anos. Uma batalha nos tribunais – com marido e mulher tentando provar, cada um à sua maneira, a autoria das pinturas – dá início ao terceiro e final ato, em que ficam evidentes dois pontos: o carisma delicado de Adams e o histrionismo às raias do patético de Christoph Waltz. Merecido vencedor de seu primeiro Oscar de coadjuvante, por “Bastardos inglórios” – mas nem tanto pelo segundo, por “Django livre” – o ator austríaco repete perigosamente os trejeitos de seus trabalhos anteriores, tornando a cena em que Keane assume simultaneamente os papéis de advogado de defesa e testemunha um deslize que quase compromete o filme como um todo. Mesmo que o caráter bufão de Keane justifique o abuso do ator de caretas e um pretenso humor, a sequência destoa nitidamente do restante da narrativa proposta pelo diretor, de um naturalismo que só cede ao lúdico quando Margaret passa a ver em todas as pessoas os olhos grandes de seus quadros. Felizmente, a cena é rápida o bastante para que não esconda do público as outras (muitas) qualidades do filme.
Bem distante de sua zona de conforto, Tim Burton acertou em cheio em dar um bem-vindo respiro de normalidade à sua carreira tão excêntrica. Assim como ele, a figurinista Colleen Atwood e o músico Danny Elfman – parte de seu leal time de colaboradores – apresentam trabalhos discretos e eficientes que mostram outro lado de seu talento. Todos estão em estado de graça, apelando para a beleza quase invisível da simplicidade – que, afinal de contas, era o maior encanto das crianças de Margaret Keane. Um belo e emocionante filme sobre o amor à arte e aos ideais estéticos acima das convenções da moda e do sucesso comercial. No fundo, um filme sobre a carreira do próprio Tim Burton.

Um comentário:

Liliane de Paula disse...

Gostei muito desse filme.

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