terça-feira

RASHOMON

RASHOMON (Rashomon, 1950, Daiei Motion Picture Company, 88min) Direção: Akira Kurosawa. Roteiro: Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto, estórias de Ryunosuke Akutagawa. Fotografia: Kazuo Miyagawa. Montagem: Akira Kurosawa. Música: Fumio Hayasaka. Direção de arte/cenários: Takashi Matsuyama/H. Motsumoto. Produção executiva: Masaichi Nagata. Produção: Minoru Jingo. Elenco: Toshiro Mifune, Machiko Kyo, Masayuki Mori, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Kichirijo Ueda, Noriko Honma, Daisuke Kato. Estreia: 26/8/50

Indicado ao Oscar de Direção de Arte/Cenários
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Um dos mais influentes e admirados diretores do cinema mundial não tem nenhum grande sucesso de bilheteria no currículo, ou tampouco fez fama se utilizando de efeitos visuais de última geração. Muitas vezes não foi mesmo reconhecido em seu país natal, sofrendo sempre com o desprezo de investidores que não reconheciam em sua filmografia a grandiosidade que o resto do mundo percebia a cada lançamento. Com filmes como “Os sete samurais” (54), “Yojimbo, o guarda-costas” (61), “Ran” (85) e Trono manchado de sangue” (57) – os dois últimos inspirados em obras de Shakespeare, o que mostra sua tendência a universalizar suas narrativas – Akira Kurosawa rompeu os limites entre o cinema oriental e ocidental e tornou-se um dos nomes mais respeitados da história do cinema. Ídolo de gente como Martin Scorsese e Steven Spielberg, Kurosawa não apenas redefiniu a forma como o público e a crítica viam o cinema japonês: tornou-se, com o tempo, o maior cineasta de seu país, fazendo escola e conquistando fãs com seu estilo poético e humanismo à toda prova.

A primeira vez em que Kurosawa deixou os espectadores de queixo caído foi em 1950, com aquele que seria uma das razões pelas quais a Academia de Hollywood criou seu hoje importantíssimo e prestigiado Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Com sua estrutura fragmentada e em forma de quebra-cabeças, “Rashomon” levou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Veneza e iniciou um namoro firme do cineasta com o Ocidente – confirmado pela refilmagem de alguns de seus trabalhos mais celebrados por cineastas cultuados como Sergio Leone, que transformou “Os sete samurais” no faroeste “Sete homens e um destino”. Com base em dois contos do escritor Ryonosuke Akutagawa – que suicidou-se aos 35 anos de idade – criou um roteiro inteligente e surpreendente, que subverte a narrativa tradicional ao apresentar uma única história sob diversos pontos de vista. Coescrito por Shinobu Hashimoto, “Rashomon” também não escapou dos olhos dos produtores americanos: virou peça de teatro, na Broadway (estrelada por Rod Steiger) e à versão “Quatro confissões”, dirigida por Martin Ritt e estrelada por Paul Newman em 1964, além, é claro, de ter inspirado dezenas de produções pelas décadas seguintes.


Aparentemente, a trama de “Rashomon” é simples e plana. Sob uma chuva torrencial, um padre (Minoru Chiaki), um plebeu (Kichijiro Ueda) e um lenhador (Takashi Shimura) se encontram debaixo do portal que dá entrada à cidade de Kyoto. Enquanto esperam que o tempo melhore, o lenhador conta aos novos amigos a inusitada experiência pela qual passou recentemente e da qual ainda não recuperou-se completamente. Tudo gira em torno do estupro de uma mulher e da subsequente morte de seu marido em uma clareira na floresta local. O lenhador descreve a investigação do crime, quando ele – que encontrou o corpo durante um passeio pelo cenário do acontecimento – depôs diante da polícia, assim como a viúva, o suposto criminoso e até uma médium, que apresenta as lembranças do ocorrido pela visão da vítima. Mas o que poderia ser simplesmente o desenrolar de uma investigação criminal muda de figura justamente porque Kurosawa embaralha as cartas do jogo e mostra para o público diferentes versões do crime, transformadas de acordo com o depoimento de cada um dos envolvidos.

É a partir daí que o roteiro – e a direção inventiva de Kurosawa – se torna uma aula de cinema. A história contada pelo bandido Tajomaru (Toshiro Mifune, um dos atores preferidos do cineasta) difere drasticamente daquela que sai da boca de Masago (Machiko Kyo) - a mulher estuprada, que ele desejou à primeira vista – e da memória da vítima fatal do caso, o samurai Takehiro (Masayuki Mori). Até mesmo a versão do lenhador oferece discrepâncias em relação ao fato, que vai sendo modificado a todo momento, de acordo com as conveniências de cada um dos entrevistados. É assim que Takehiro morre de diferentes modos diante dos olhos do público – como uma vítima de duelo, assassinado pela esposa ou até mesmo como suicida. A cada pedaço acrescentado ao quebra-cabeças, mais o diretor se diverte em aprofundar seu estilo visual, sublinhando cada emoção com uma trilha sonora adequada e truques simples para garantir o melhor efeito plástico possível. Um dos primeiros filmes a utilizar-se da hoje corriqueira técnica da câmera na mão, “Rashomon” revelou em Kurosawa um cineasta preocupado tanto com a estética quanto com o conteúdo de suas obras, motivo principal pelo qual foi tão bem recebido pela crítica do mundo inteiro – vale lembrar que nem sempre sua pátria foi tão generosa com ele, acusando-o de ocidentalizar-se em excesso (culpa talvez de sua fascinação pelo cinema norte-americano).  Houve até quem creditasse muitas das novidades narrativas dessa sua primeira obra-prima ao clássico “Cidadão Kane” (41) – algo desmentido pelo diretor, que afirmou posteriormente só ter assistido ao filme de Orson Welles alguns anos depois do lançamento de “Rashomon”.

O que importa, porém, é o quanto Kurosawa em geral e “Rashomon” em particular mudaram a história da sétima arte. Por mais que atualmente tudo aquilo que o tenha feito sobressair-se diante do panorama do cinema mundial pareça rotineiro ou pouco revolucionário, em seu tempo o filme mostrou que havia muita vida fora do circuito americano e europeu no modo de se fazer filmes. Encantou a crítica, conquistou cinéfilos mais antenados, lançou Toshiro Mifune mundo afora, influenciou roteiristas e cineastas e, mais do que tudo, ousou acabar sua história sem apresentar um final definitivo, preferindo deixar à plateia o sabor de descobrir, a cada revisão, novas camadas de sua trama. O final feliz, representado pela pureza de um bebê abandonado, é a chave de ouro de um filme irretocável e imperdível para quem busca conhecer o cinema em todo o seu potencial. Sensacional!

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