terça-feira

EU, DANIEL BLAKE

EU, DANIEL BLAKE (I, Daniel Blake, 2016, Sixteen Films/Why Not Productions/Wild Bunch, 100min) Direção: Ken Loach. Roteiro: Paul Laverty. Fotografia: Robbie Ryan. Montagem: Jonathan Morris. Música: George Fenton. Figurino: Joanne Slater. Direção de arte/cenários: Fergus Clegg, Linda Wilson. Produção executiva: Pascal Caucheteux, Philippe Logie, Vincent Maraval, Grégoire Sorlat. Produção: Rebecca O'Brien. Elenco: Dave Johns, Hayley Squires, Briana Shann, Dylan McKiernan, Kate Rutter. Estreia: 13/5/16 (Festival de Cannes)

Vencedor da Palma de Ouro (Melhor Filme) no Festival de Cannes

 Alguns filmes tem o dom da concisão e da simplicidade. E um dos cineastas mais felizes em casar esses dois elementos tão raros quanto importantes é o inglês Ken Loach: em uma carreira que já atravessa quatro décadas e que conta com mais de cinquenta títulos entre cinema e televisão, sua filmografia é recheada de produções que se destacam pela objetividade narrativa e pela temática política e social. Esse viés é nitidamente perceptível até para quem nunca assistiu a nenhum de seus filmes e dá de cara com "Eu, Daniel Blake", que lhe rendeu uma segunda Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes 2016 (a primeira chegou dez anos antes, com "Ventos da liberdade"): mesmo sem forçar a mão em seu discurso contra a burocracia que esmaga o indivíduo, o roteiro de Paul Laverty é um grito de rebeldia em direção ao governo britânico e - por que não? - a todos aqueles que privilegiam rituais desumanos em detrimento das pessoas que acabam por tornarem-se suas vítimas. Dono de uma sobriedade exemplar e de um senso de foco acima do normal, o filme de Loach conquista o público justamente por sua despretensão estilística: é quase um documentário, seco e sem firulas visuais, com protagonistas tão vívidos que poderiam morar na casa ao lado de qualquer um da plateia - principalmente porque são interpretados por atores desconhecidos, o que lhes dá ainda mais veracidade.

Em uma impressionante estreia no cinema, Dave Johns vive o personagem-título, um viúvo de 59 anos que está se recuperando de um ataque cardíaco e experimentando o amargo sabor da cruel e idiossincrática burocracia do serviço social britânico. Depois de anos trabalhando como carpinteiro, ele pretende voltar ao serviço mas é impedido por seus médicos, que insistem que ele deve manter-se em repouso. Sua única alternativa é recorrer ao auxílio-desemprego - mas, para isso, ele precisa comprovar que está em busca de trabalho, uma vez que, segundo os critérios médicos do governo, ele não atinge a pontuação necessária para convencê-los de que está doente. Preso a esse impasse, Blake passa por uma via-crúcis de repartições públicas, tentando de todas as maneiras convencer a quem for preciso de que, sem o auxílio e sem emprego, ele não tem como sobreviver. De natureza generosa e afável, ele se aproxima de Katie (Hayley Squires), uma jovem mãe de solteira que tenta sustentar os dois filhos pequenos com serviços de faxina, e uma bela e descompromissada amizade surge entre eles. No fundo, ambos são pessoas comuns lutando pela sobrevivência em uma sociedade opressora e robótica.


Com um diálogo direto e sem firulas com a plateia, Ken Loach se aproveita do carisma de seu ator central e da ressonância fortemente política e social de sua trama para conquistar o espectador pela emoção mais primária. Identificada com as dificuldades do personagem e cativado por sua simpatia e simplicidade, a plateia se deixa envolver sem dificuldades pela história de Blake - que também esbarra em seu relacionamento impossível com a tecnologia e a solidão com o sempre delicioso senso de humor britânico, que não deixa que o filme mergulhe na melancolia e no pessimismo radical. Acertando no ponto entre o riso sutil e o drama discreto, Dave Johns cria um Daniel Blake com o qual é impossível não simpatizar, seja devido à sua situação ou por sua personalidade resiliente e altruísta. Sua química com Hayley Squires é brilhante, assim como com os atores mirins que vivem os filhos de Katie - encantadores sem buscar o apelo fácil dos gênios precoces. Mais uma vez demonstrando seu enorme talento como diretor de atores, Loach apresenta cenas de uma naturalidade tão extrema que é difícil não se deixar conquistar.

Ovacionado no Festival de Cannes de onde saiu premiado, "Eu, Daniel Blake" foi saudado também como um dos filmes mais importantes do ano, principalmente por causa de seu alto teor de questionamentos sociais em um período tão crítico da história da Inglaterra - e de muitos outros países atravessando graves crises. Sem apontar soluções fáceis, Loach apenas aponta sua câmera para uma história banal e aparentemente simples e deixa que seus personagens a contem, com um frescor e uma inteligência ímpares. Não é à toa que o filme soa como um documentário - a simplicidade é a palavra de ordem na obra do cineasta, e aqui ele vai fundo em seus princípios artísticos, injetando uma alta dose de realismo em seu roteiro e evitando qualquer tipo de excesso (seja em seu discurso ou em sua estética crua e sutil). "Eu, Daniel Blake" é um dos grandes filmes de 2016, daqueles capazes de aquecer o coração e o cérebro dos espectadores. Mais um grande acerto do diretor.

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